O problema do bem e do mal, ou melhor, a alternativa constitutiva de todo e qualquer problema, da escolha e da decisão, da adequação dum acto a si próprio (isso, o seu sentido) dá-se evidentemente na reflexividade e na auto-determinação produzida por esta. Põe imediatamente o problema da verdade, do ser ou não ser assim ou cozido.
É assim que argumentam os que desejam a descriminalização, de que a criminalização não conduz às condições de respeito pela liberdade de consciência inerente àquele em que se produz uma alma, uma mente reflexiva que se interroga e cujo fundo de resposta à interrogação só a ele pertence. Os que criminalizam estonteiam-se pelo facto de se poder representar que há duas almas a bailar no dilema, duas liberdades.
Se há unicidade de sentido (neste caso, e passe-se a interrogação, a universalidade dos direitos humanos) e comunidade de acesso à sua confusa e tacteante busca, porque não há união dialéctica entre ambas posições?
Não se trata de hierarquias diferentes de valores (o direito à vida humana e o direito à auto-determinação, que paradoxalmente significa o direito à alma dum e o direito à alma doutra) visto que é precisamente na tensão entre os valores que se dá a discussão e diferenciação, e se daria, caso fossem os direitos humanos a estar em jogo, o seu mútuo esclarecimento e aprofundamento. Ou seja, caso fosse a verdade que estivesse em jogo. Mas o que parece passar-se é um conflito insanável, explícito e inexplícito, consciente e inconsciente – no domínio das representações, num mundo em que estas se totalizaram e pretendem ocupar o espaço todo da vida, e da alma.
A representação, essa filha pródiga do espelho de si próprio, onde perfilam imagens e conceitos – é um momento da verdade, é até o inaugural momento em que parece estar algo à nossa frente, como se fosse possível lançar-se numa viagem de alargamento e aprofundamento da vida, de si próprio.
É a representabilidade do mundo na mente reflexiva que possibilita interrogar indirectamente a vida, e ao duplo de si próprio na auto-representação.
E precisamente por isso, a questão do autêntico e do falso, não se esgota no seu momento interpelante, na sua interrogação, mas prossegue na remissão para a vida vivida daquele que tropeçou em si próprio e se interrogou. Isto é, para nós próprios, em carne e medo e esperança, vivos.
Sem retorno a si não há execução, não há aferição de si, não há verdade, não há nada, tão só balões assustados a pairar no meio de lentas representações e tenazes conceitos.
No plano representativo, há contaminações de significado, que só uma feroz remissão a si pode aferir. Por exemplo relativamente à questão do aborto, a gravidez mexe com a ligação profunda entre sexo e vida, até ao útero da nossa mãe, nós fomos aquela pasta celular, nós fomos aquilo, um pequeno nada em que se inicia a nossa vida, nós próprios, os que nascemos. O modo como nos representamos a gravidez está inquinada da auto-representação de cada um, o que nos faz ressentir o feto como um pequeno eu prestes a ser assassinado, ou um pequeno nada celular de que nos podemos desfazer sem mais, no limite da equivocidade representativa e conforme projectemos a auto-representação no ser humano em gestação ou na mulher grávida. Outra representação em jogo é evidentemente, a da mulher, ou do feminino. O que é curioso verificar é a menoridade e vitimização que categoriza representacionalmente a mulher (empurrada biologicamente para a gravidez, empurrada socio-economicamente para o aborto).
Esta exigida remissão a si, não se refere ao que numa certa tradição se nomeia o mundo empírico, visto que este é evidentemente um plano de representações, com a sua estrutura e dinâmica conceptual definível. Esta remissão exige a suspeita de todos os sistemas de sentido, em que por muito que as suas representações e interiores conecções se queiram verdadeiras de realidade – e precisamente por e através disso mesmo – no seu fechamento invertem-se num despotismo conceptual que se afasta do vivido que o originou. Este torna-se um estranho de si próprio, na separação do duplo e daquilo que é suposto duplicar. Torna-se uma mentira. Quando um determinado fluxo de representações e seu modo de constituir-se, pretendem esgotar as possibilidade de revelação e sentido do obscuro estar aqui – soa o alarme profético, a exigência do retorno à anterioridade do estertor mental, ao grito de si próprio no silêncio mais obscuro de si próprio, na verdade que somos e de que somos, no puro aqui. A remissão para o inominável instante, é exigência de autenticidade integral, viva. É o fundamento central e inicial da ética, que passa o resto da sua dinâmica a fugir dele, do fugidio estar aqui, a vida somente nada mais.
(Estou cansado, pensar é uma chatice perigosa. Acendo a televisão, que fique em frente de mim, tão oca como o que digo e penso, cuidado com a inevitável e latente sistematização da vida na tua pinha, rapaz).
A miúda de catorze anos, a queca de sexta-feira à noite, o anticoncepcional que não funcionou, a responsabilidade na quantidade de filhos, o desespero de quem vive em abandono e pelas ruas da cidade, o granel no quarto escuro do sex-bar, a vida embriagada e embriagante dos paraísos artificiais a confusão neurótica da carência afectiva, etc.
Será nas remissões às situações de vida que é aferida a consistência das exigências éticas, e as diferenças vitais que a formalidade genérica refracta e subsume mas que são o seu princípio orientador. É aqui o acto e lugar em que a distinção entre o acto de abortar e o de assassinar outrem se dará ou não.
Dá ideia que aquilo que separa os que recusam a descriminalização do aborto, dos que a requerem, não tem nada que ver com a problemática dos direitos humanos. É conflito de regionalidades identitárias que se fecham em si, assustadas. O que os une, ou poderá unir, é o esclarecimento gradual da sua mútua e por ora disjuntiva conexão, a saber – da auto-determinação aliada à determinação própria do outro, do nascimento até à morte, claro, do amor à eternidade.
A mui famosa expressão, já neste blog também referida, de que « A minha liberdade acaba onde começa a do outro » indica evidente e confusamente algo de fulcral na noção de direitos humanos, mas vem ainda imbuída duma relação sujeito e objecto mutuamente reversível, isto é, o outro enquanto objecto para mim e eu enquanto objecto para ele. Talvez um crescimento duma solidariedade imanente (eu também sou o outro) abra vias mais certas à intuição que preside a esta famosa afirmação. Até porque formalmente, ela é problemática : se a minha liberdade acaba onde começa a do outro, onde raio acaba a deste ? Ficamos todos presos e bloqueados, visto até que a definição de obstáculo ser relativa ao próprio, e qualquer acto de liberdade minha poder ser considerado atentado à liberdade do outro, dos cigarros às caricaturas. Numa solidariedade imanente, a liberdade do outro seria elemento constituinte da minha, e até seu alargamento e intensificação.
Passa-se também que a gravidez realiza de modo brutal, do fundo de não haver alguém e passar a haver através de outros, essa solidariedade imanente em que um não é sem o outro. Mas se na geração aquele que está para nascer depende exclusiva e vitalmente do corpo que o gera, a mulher enquanto pessoa tem o inalianável direito de decidir-se pela maternidade, de escolher ou não escolher esta. Não há dever pessoal de maternidade, ou melhor, mesmo que haja, nunca poderá ser imposto por outra instância que não a própria mulher perante essa sua possiblidade. Outro factor perturbante aqui, é que o homem não pode fazer uma remissão directa para o acontecimento, visto que não é o seu corpo que pode engravidar. A diferenciação de géneros é aqui inequívoca.
Entre a maternidade e a gravidez vai o mesmo abismo que entre a lucidez e a vida bruta. A maternidade não decorre da biologia, mas da assunção duma tarefa de vida. E os motivos duma mulher para não ser mãe não são nem julgáveis nem qualificáveis no espaço público.
Por outro lado, todo o humano, essa possibilidade de haver um eu, algo que inquire por si – tem um inalianável direito a ser e viver. É nesse sentido que se discute na problemática do aborto, a questão do sujeito humano, se um embrião o é ou não, e a verdade é que a questão está longe de ser clara.
(Devemos viver agora, como seres humanos, diz a Michelle Pfeiffer no filme « A mulher falcão », na televisão enquanto escrevo estas linhas.)
Legislar é um acto formal cujos conteúdos de valor e sentido advém da ética, da estética e da religiosidade, da ciência, da política, do senso comum... A legislação (a lei moral, a lei estética, a lei religiosa, a lei científica, a lei política, a lei civil, a lei cultural…) é um acto puramente formal que retira o seu conteúdo de actividades vitais que lhe são anteriores.
Responder é um resultado do início e do fim – pelo meio, é só miopia confusa. E a lei, é sempre a última a ouvir a resposta. Pois a lei nunca é resposta, mas tão só confirmação ou negação de respostas já dadas. Só se escreve na pedra o que já se escreveu no coração, justa ou injustamente.
Há também a curiosa e perversa situação de, em nome duma dialogalidade na diferença, se pretender anular esta retirando do discurso público elementos de constituição da singularidade tais como experiências pessoais, concepções do mundo e da vida, modelos de pensamento, signos e símbolos poéticos, estruturas religiosas, etc. Pretende-se, ingénua ou dissimuladamente, fazer passar um horizonte de que é pensável uma razão pura e auto-determinada que corresponda a um logos universal, uma razão comum e idêntica a todos os humanos e seres reflexivos, e correspondente ainda por cima à tessitura do real. Como se a argumentação retirasse o seu sentido e orientação de si própria, quando ela não passa de um método de aferição e desenvolvimento das diversas contraposições de teses, cuja constituição é bem mais alargada do que a dedução. Ou seja, elide-se a parte do hipotético, isto é, as premissas ou interrogações donde se parte. Resta perguntar a partir de que representações e modelos se argumenta, visto que a argumentação e a dedução são sempre segundos momentos de qualquer processo de esclarecimento. Infelizmente, o equívoco é desejado pela pretensão de se estar certo e a partir daí comandar ou condenar a consciência do outro.
A mútua libertação é uma das tarefas mais árduas implícitas na dinâmica dos direitos humanos.
Ora, passa-se que a compreensão de algo como os direitos humanos, terá ou não terá a sua universalidade, numa integral tomada de consciência de si próprio e da sua humanidade, que não estritamente dedutiva, embora evidente e fundamentalmente também o seja. Uma das suas revelações reside aliás na singeleza dum sorriso de acolhimento e partilha. Mas o simples, está tão afastado de nós como a verdade das coisas. É chato como o moscardo ateniense, chegar-se à conclusão que nisto que está em jogo e interpelação, no fundo e para ir a direito, aprender a amar e a morrer – estamos ainda e sempre a milhas da sua aferição e gradual realização. Ainda não chegámos à nossa própria vida, quanto mais. Não sejamos absolutamente certos a julgar seja o que for. Eu cá, quando ouço a palavra “irrefutável”, peço logo um gim tónico.
Num mundo de representações e tacteantes impressões, é olhando de frente, de dentro e de viés, para a complicação que somos, que nos aproximamos do nosso próprio ser, e do sentido que nos realiza em conformidade. (Ou então, quiçá, simplesmente sorrindo, mas nesse caso olhando e esperando, e agindo e continuando a espera, lúcido da sua própria obscuridade – anseando, por si próprio, no fim da jornada do pecado e da graça.)
A maioria das situações dilemáticas exigem a escolha do mal menor, ou da retenção dum mal através doutro mal, como na legítima defesa ou no uso da metadona na heroinomania. Neste ponto, reside também a questão trans-ética e política, de quais as instâncias passíveis de interferir na decisão. O facto de o dilema do aborto implicar uma decisão acerca do que se passa no próprio corpo duma mulher grávida, não é de somenos, e distingue claramente a questão abortiva de outras em que os direitos humanos são interrogados. Porque a legitimidade do Estado, isto é, uma instância colectiva – e deixando de lado agora a definição do tipo de Estado e suas soberanias inerentes – de poder determinar decisões acerca do corpo pessoal de cada uma (pois, para o caso isto resume-se ao género feminino, e nenhum homem pode impor a sua paternidade, isto é, obrigar uma mulher à maternidade), não é de todo líquida, nem nos seus princípios nem nas suas eventuais consequências para além da problemática do aborto.
Põe-se aqui também com toda a sua acutilância, e com relação clara com a problemática do aborto, a questão da auto-determinação sexual. Isto é, o direito a poder foder como e quando e com quantas pessoas se quiser, desde que em mútuo e adulto consentimento (é preciso uma perversão representativa enorme, para a partir da distinção conceptual entre o direito à vida humana e o sentido da sexualidade, pretender que na remissão a si uma decisão num dos campos não configure uma consequência no outro). Dizer-se que o direito é limitado pelo dever que lhe é correspondente é estar aquém da problemática, porque um direito ou é a afirmação e execução de um dever ou está manco e mutilado. O dever de decidir a minha sexualidade é inerente ao direito de a decidir, como é formalmente evidente. A questão aqui é se é legítima a intervenção duma instância que não o próprio na determinação das práticas sexuais, que sendo livres conduzirão sempre, mais ou menos pontualmente, a gravidezes indesejadas, e à questão da sua resolução.
No aspecto da gravidez, trata-se do direito a ter filhos se constituir no dever de os ter em condições de responsável maternidade e paternidade, e quais as adequadas práticas de execução e manutenção desse direito e dever. Ter filhos a trouxe-mouxe não é maternidade nenhuma, nem direito algum visto que inviabiliza as suas próprias condições de responsabilidade.
A resolução dum direito e respectivo dever nortear outros é mais complicada do que parece quando proferida do pódio da discursividade. Orientar o direito à auto-determinação sexual pelo direito à maternidade, ou vice-versa, põe contradições práticas difíceis de resolver, por exemplo: quando os contraceptivos falham com quem não quer ou não pode responder dignamente à maternidade e paternidade. Já para não falar de tantas situações a que a nossa realidade social e psicológica conduz e que inevitavelmente têm como resultado desastrosas gravidezes, e a que o acto de abortar não soluciona na sua raíz mas constitui o grito da pessoa num dilema que não escolheu nem lhe foram dadas condições sociais e psicológicas de o fazer.
(E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viagem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... ouço escorrer surdamente da casa do vizinho, paro de escrever, acendo um cigarro, merda, o que dizer, pensar, fazer... A alma é sempre maior que o mundo, e é neste doloroso embate que nasce a linguagem, essa perversão gritada de nada e tudo.)
No fundo, o que complica isto tudo, são as instâncias em jogo. Nem a ética tem uma relação directa com a prática, nem a lei civil tem uma relação directa com uma ou com outra. As regulações mútuas em jogo entre estas diversas instâncias não pode ser resolvida por uma supremacia de uma perante as outras, que caracteriza a maioria das propostas a que acedemos ou produzimos, como é notório nesta problemática do aborto: a barriga é minha, a sociedade moderna e liberal implica o aborto legal, o aborto é um facto de que decorre a sua legalização e regulamentação, não me deixam nascer, só engravida quem quer, a mulher deve levar a gravidez até ao fim no dever duma sexualidade responsável, etc, são fenómenos discursivos desta ilegítima supremacia de um dos polos da tensão entre ética, prática e política, quando não o são da mera estupidez ou má fé que tanto nos caracteriza.
E a constituição destas instâncias – ética, prática, política - em conformidade com os direitos humanos, está longe de ser efectiva, ou sequer esclarecida filosoficamente, por muito que ande na boca de todos nós como uma cantilena certa e adquirida. Quanto a mim, ainda nem chegámos à construção do navio, quanto mais às normas da sua navegação.
Relativamente à solidariedade imanente, que é o sentido cristão dos direitos humanos, perante as condições em que somos e vivemos, é caso para dizer: falaremos disso noutro dia, que estes que construímos não têm mesmo condições para tal.