Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Ville de Lumière

Há épocas e lugares, em que a estrutura e dinâmica representacionais são orientadas por um centro de sentido. Hoje em dia ocidental, o centro dissolveu-se e as representações andam à solta, orientando-se por sentidos e ideologias que é preciso descortinar para se ter acesso ao significado representativo em jogo. Isto parece pedantemente complicado e afastado do concreto quotidiano; no entanto, é o que todos fazemos ao distinguirmos a palavra “paz” dum discurso do governo do dum monge budista, ou ou a gaja ou gajo bons do anúncio da mercadoria que representacionalmente os transporta. É evidente, e aqui estamos nos modelos analíticos necessários à aferição do real, que nunca houve exclusivamente um centro de sentido, e que em qualquer sociedade, a diversidade de sistemas de ideologia e representação sempre existiu. Mas o que tento aqui focar, é o facto de na estrutura social e cultural do pluralismo liberal – é a própria descentração de sentido que constitui a dinâmica social, e que ele propõe fundar e desenvolver.

Quando tal não acontece, passa-se que é contraditoriamente que o centro de sentido se apresenta como a mediação da pluralidade num mínimo de legalidade que a possibilite. Ou seja, trata-se sempre de saber hoje em dia, visto as condições de esclarecimento e diálogo democrático não existirem, onde está o centro de decisão, visto que ele se apresenta sob representações que não lhe correspondem nem sequer indirectamente (por exemplo, a palavra “justiça fiscal” na boca do Ministro das Finanças, ou a palavra “amor” no anúncio do telemóvel). Num mundo em que o centro de sentido, e até o consenso ideal e prático, são substituídos por descentramentos ilusórios e falsas representações, trata-se quase sempre de aferir quem é que nos engana e como, e sobretudo, o que é que em nós próprios nos engana e falsifica.

O engano maior, porque sistémico e fundante, é evidentemente a afirmação de que vivemos em democracia, isto é, que há uma relação indirecta mas minimamente correspondente, entre as vontades da população, e a direcção governativa do geral nacional ou internacional. Acresce a ilusão que essa correspondência e dinâmica, são orientadas e limitadas nas suas possibilidades, por um mínimo constituinte da própria liberalidade e democraticidade. Tudo isto está muito bem narrado, tal como a Carta Universal dos Direitos Humanos. Passa-se simplesmente que, onde se apresentam enquanto tal, na maioria das vezes são apenas capas que escondem portas que abrem para significados opostos ao que apresentam, como qualquer um de nós pode verificar olhando para as práticas governativas e os discursos públicos. Ou para o caso em blog aqui, analisar os subtextos e sentido globais das defesas da vida de tanto discurso “Não” ou das da liberdade e igualdade de tanto discurso “Sim”.

A democracia não trata apenas de se poder votar e falar livremente, mas de estarem dadas as condições verdadeiras de esclarecimento e dialogalidade. Isto é, à democracia corresponde uma ratio que não estando operante, a transforma noutra coisa qualquer.

Por exemplo, o secretismo do voto não trata apenas de proteger a intimidade e liberdade de quem vota, mas de assegurar no debate democrático a sua dialogalidade aberta, para que a conclusão e decisão pessoal (o voto) venha no fim do debate, e não no seu início e desenrolar. Que alguém já esteja claro quanto ao seu voto não é motivo para tal quebra de secretismo, para já porque ninguém tem saberes absolutos que uma informação ou ideia não possa vir a transformar; e depois, porque é exigência de esclarecimento, a suspensão formal da conclusão para esclarecimento e aprofundamento das premissas em confrontação. Isto não significa que não se indique no diálogo democrático, o que se pretende ou não ir votar, mas que tal deve estar integrado nas afirmações e argumentações temáticas, e não ser uma bandeira de posição certa e sumária.

Tudo isto seria grave, se vivêssemos em democracia.

Mas numa sociedade em que um ex-primeiro ministro afirma que é necessário o Presidente da República afirmar como vai votar, estamos no reino das manipulações identitárias e representacionais. Mas claro, e como afirmou o primeiro ministro, “Não discutiremos metafísica”, numa representação de pragmatismo tão falsa como as próprias medidas que o seu governo toma – falsidade que atravessa todos os governos possíveis dum sistema eleitoral que assenta precisamente na desinformação e manipulação identitária, como é confirmado por todas as campanhas possíveis e pensáveis com as regras disponíveis. O que é preciso é “simplex”, o que evidentemente fecha as posições em si próprias, porque a complexidade dá-se precisamente na confrontação. Para o caso em blog, temos o fechamento de cada qual, geralmente nos silogismos “vida humana, protecção do sujeito vivo, portanto Não” ou “dignidade humana, defesa das suas condições, portanto Sim”. O discurso de cartazes e slogans e manifestações, vive desta estupidificação requerida pela alienação, disfarçada de pragmatismo e de “ir ao que importa” sem circunlóquios.

A este fechamento em si próprio de cada posição possível corresponde a configuração das outras posições em representações que confirmem a nossa. Para além de não haver deslocamento nenhum para outras possibilidades, há a transformação destas em algo que não são, como se vê em todas as mirabolantes interpretações que se têm dado à pergunta do referendo, como por exemplo, e para começar discordantemente, a de que a despenalização proposta corresponde a uma liberalização. Convém esclarecer que liberalização é um termo que significa que a actividade em questão não terá outra regularização senão o mercado livre. Ora, não é isso que é perguntado, e não é isso que é proposto (embora, como convém anti-democraticamente, não se saber bem o que é proposto, o que seja como for é de somenos, pois a relação entre o que é proposto em campanhas e discursos e o que é executado é, quando convém anti-democraticamente e como toda a gente sabe, praticamente nula). É evidente que a despenalização sem dar condições de execução da actividade para a poder regular, posição casuística de alguns que querem dormir descansados através da contradição de não acompanhamento do acto abortivo aliado a uma não condenação da mulher que aborta, serve tão só para isso mesmo. Qualquer remissão a si mostra o farisaísmo de tal posição que deixa tudo na mesma mexendo ligeiramente nas representações em jogo (neste caso, a imaginária posição de estar ao lado das duas vítimas do dilema, isto é, uma auto-representação imaculada que não resiste à mínima remissão).

Por exemplo concordante ou talvez não, temos o caso da tese de que a despenalização do aborto corresponde a uma medida urgente de saúde e higiene pública, e que a interrogação ética e metafísica deve ser suspensa. Esta despersonalização do aborto produz uma representação técnica que elide o mistério do ser-se humano e correspondentes interrogações. Trata-se aqui da falsidade de propor para um problema metafisicamente angustiante como a decisão abortiva, uma solução técnica baseada nas possibilidades médicas sem mais, aplicadas ao corpo da mulher como se o embrião ou feto não fosse, de algum modo, um segundo corpo humano. Porque é evidente que para descriminalizar o aborto até às dez semanas, é necessário determinar se o embrião é ou não uma pessoa humana, e não pôr pragmaticamente a carroça à frente dos bois. A imaginária posição de deixar essa determinação no reino da intimidade e liberdade de consciência, é uma falácia, visto que essa determinação não pode ser livre. Nenhuma sociedade se organiza, nem a nazi, sem a determinação geral e pública de quem é ou não humano, isto é, um elemento pleno dessa mesma sociedade. Passa-se, e isso é outra questão, que na prática e exceptuando o caso do aborto e das heranças, a nossa sociedade age não considerando o embrião uma pessoa. Mas essa prática tem evidentemente de se colocar consistentemente perante os direitos humanos e a ciência, em que se levanta pertinente e ferozmente, a possibilidade contrária.

Nota: Quedo a minha participação neste blog, isto para o caso de se manter a intenção de fechá-lo logo após o referendo. Resta-me agradecer a todos a oportunidade, não apenas de ter podido perspegar para aqui os meus dislates ficcionais e temáticos, mas sobretudo de me ter confrontado com a questão específica do aborto e suas abrangências políticas, culturais, religiosas, etc. Não o teria feito com o grau a que fui interpelado, tanto por participantes como por comentadores. Não quero também deixar de dizer o óbvio: uma questão complexa como esta, e com consequências ou interrogações tão veementes em todas as suas abrangências, não será resolvida com uma lei, ainda por cima ilegitimamente posta a referendo de campanha e propaganda. Era o que faltava para a humanidade, uma problemática ética e ontológica ser resolvida e arquivada com umas eleições anti-democráticas. Um abraço a tutti quanti.

2 Comments:

Blogger Pedro Leal said...

Vitor

A tua escrita assustou-me algumas vezes. Outras concordei. Outras discordei.
Mas tudo está bem quando acaba bem.

Um abraço

11:53 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Curioso, David… Poderia dizer o mesmo (susto e estertores de concordância e discordância) acerca disso mesmo, do que eu próprio escrevo;) É uma mania de não responder a interrogações sem executar movimentações do ponto de vista. Interrogar a interrogação, antes de formalizar passos de resposta… Enfim…

Um abraço.

3:49 da tarde  

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