Irra II – O outro lado (ou talvez não)
Tem razão o /me, no post anterior. A questão do aborto é muito mais complexa e grave do que uma simples cruz no Sim ou no Não. No entanto, é preciso ter cuidado para não cair no outro extremo (o que, esclareço, não acontece com o /me): deixar que a complexidade, ou a pouca sabedoria da pergunta, nos paralise. Por muito binária, muito preto-e-branco, que seja a decisão que nos pedem ela tem que ser enfrentada.
Achamos que a mãe pode decidir livremente sobre o destino do feto que traz dentro de si, até às dez semanas de gestação? Ou mantemos a lei existente que não permite a destruição do feto, excepto em três situações: malformação, violação ou perigo de vida para a progenitora?
Como parece claro para a maioria dos que aqui escrevem e comentam, nenhuma das hipóteses é imaculada. Ambas causam “danos colaterais”. Mas a democracia também é isto. “Sujar as mãos” na escolha do mal menor. Se abdicarmos da nossa intervenção outros decidirão por nós. Ou seja, mantemos a responsabilidade pelo resultado final só não usamos a capacidade de o influenciar.
Quero com isto dizer que abstenção não é legítima? Não. A abstenção faz parte do jogo democrático. Apenas me insurjo, se o posso fazer, contra os que abdicam da participação no referendo pela desconforto que uma decisão tão simplista, sim ou não, pode trazer.
8 Comments:
Caro David.
Uma série de factores ideológicos estão subjacentes no teu discurso, e que produzem incompreensão de certos pontos de vista. Isso passa-se sempre que as teses de fundo são postas precisamente… nos fundos ;)
Dos pressupostos inerentes, há dois que me fazem imensa comichão. O primeiro, é a de que a representatividade democrático-liberal assenta em decisões da população, ou da maioria desta; e a segunda, que a lei civil impede ou permite seja o que for.
Qunato à primeira, é o contrário que sucede: são as próprias estruturas representativas que impõem as decisões, e os referendos são técnicas de disfarce dessa alienação da vontade que brinda todos os alegres súbditos do poder vigente. Para simplificarmos, o efeito mais visível, e por isso mesmo menos posto em causa neste tipo de debates, é a imposição do sistema liberal economicista (que torna a economia um fim em si mesmo), o que no nosso país se pode conferir com a alternância (sic) dos dois iguais partidos que nos governam há décadas. Para os mais radicais e aborrecidos, a abstenção (e não apenas em referendos) é uma das expressões de negação deste estado de coisas. Mesmo quando mais ou menos consciente, o facto de alguém preferir ir à praia ou ao cinema em vez de ir votar, indicia precisamente o fastio perante a inutilidade e alienação dos mecanismos aparentemente democráticos. Claro que os súbditos sistémicos berram logo pela irresponsabilidade (como se votar fosse responder a seja o que fosse a não ser “sim, sim”:P). É aliás o que reúne todos eles, esse temor dos que se abstém, até porque muitos dos que se abstém do voto, na verdade, andam a trabalhar em sub-sistemas que vão minando o global. Ou são pelo menos, potenciais trabalhadores do contra-sistema.
Muito pouca gente deixaria de ir votar seja no que fosse, se realmente “influenciasse o resultado final”. Ingenuidade ou sofisma, a pretensão dos avatares em classificar de menoridade democrática e participativa os que se descartam, não passa duma encapotada publicidade e policiamento do glorioso estado de coisas que caminha alegremente para a destruição – das coisas, pois, todas elas. É o planeta que nós estamos a abortar, e não por decidir isto ou aquilo dentro da ideologia global que nos rege, mas pelo sentido estrutural da mesma. Há inúmeras reacções a esta ditadura, uma asquerosas e outras não. São no entanto todas – sinais de alarme.
Quanto à ideia da “lei permitir”… bem, esta ainda é mais sofística ou ingénua. A lei não permite nem impede (só Deus tem poder para tal :P). A lei regula, e posiciona na realidade os modos de acontecimento das coisas. Ninguém impede ou permite abortos (ou o que for) com uma lei, isso é uma linguagem de pura propaganda da jurisdição dum sistema social. A lei penaliza, nada mais, e como se sabe, apenas os mais desmunidos de valores do sistema (que não são éticos, mas sim financeiros e contratuais).
É verdade que isto está um pouco fora do tema deste blog, e da minha suposta mudez ;) Mas penso que, tendo já assumido o que assumi, não poderia deixar de comentar este teu post do modo como o faço.
Muitas questões se levantam: a relação entre ética e política, entre poderes e regulação destes, entre juridisção e jurisprudência, e, para o caso, entre ética e biologia. Há também questões religiosas que poderiam ser trazidas ao barulho (quero dizer, explicitamente, porque implicitamente, no fundo, é um ver se te avias ;)
Mas isto é apenas um comentário a que me impeliu certa frontalidade que prezo; porque dado o estado das coisas, é sobretudo a dúvida e a interrogação que me interpelam e orientam quando enfrento questões políticas. Não estou nada seguro dos pressupostos, e a última das coisas que eu pretendo é que se entenda os dislates que para aqui perspego como saberes ou certezas.
Sabes, no fundo e no limite, tudo isto é patético. Trata-se de perceber que dançamos a música que de fora vem (pathos). Mas nada nos impede de suspender a dança, e tentar apreender para onde nos conduzem os passos da dança. Este referendo, é trecho musical para um dos passos (sim, não, nada digo); mas o seu sentido profundo reside, claro está, na orquestração geral.
Abraço, e bom dia.
Ah bolas, isto do estado matinal de mais nhurrice que o habitual… ;)
No terceiro parágrafo do meu comentário acima, onde se lê:
“(que torna a economia um fim em si mesmo) »
Deve ler-se :
« (que torna o lucro financeiro um fim em si mesmo) »
Visto até que a economia é algo de etimologicamente esplendoroso, isto é, do « governo da habitação » - ou do habitat, se preferirmos.
Bom... Grande post do David, grande comentário do Vítor. Isto está a correr bem! Parece-me que o trivial já está dito, e que há agora espaço para discussões mais serenas e profundas. Estou a gostar. :)
Convem dizer, já que isto veio à baila, que a minha suposta mudez é auto-imposta... Porque sei que este é um tema em que as projecções identitárias são tão fortes e inconscientes que a crispação e a ira são trazidas de imediato ao diálogo... E como é um tema complexo (incluindo, David, o próprio acto do referendo ;P) e no qual, pelo menos eu, se patina como coxos grandes... A tal serenidade e profundidade é difícil, daí alguma retenção dialogal...
Enfim, isto para os menos atentos, porque é evidente que se um post como o da Vanda "passa"... ;);)
Caro Vítor,
Quanto aos dois pontos que referes direi o seguinte.
Sim, a democracia, a democracia que vivemos no Ocidente, é um sistema imperfeito. Mas é o menos mau que conheço. O século XX testou vários sistemas alternativos e os resultados foram desastrosos. Não que eu acredite que a “voz do povo é a voz de Deus” (no sentido de tomar sempre a decisões certas). Mas, pelo menos, o sistema democrático permite trocar de governantes de tempos a tempos… O que é uma grande, grande, vantagem. Será sensato minar este sistema quando não se vislumbra uma alternativa melhor?
Quanto à lei, na verdade não impede que a infracção aconteça. A lei pune quem infringe. É assim para tudo: roubos, homicídios, burlas, má condução. No entanto, há uma realidade de não podemos negar. Nos países onde o aborto foi legalizado o seu número aumentou consideravelmente.
Um abraço
Caro David.
Não se trata de abstracções como perfeição/imperfeição mas de fenómenos socio-políticos específicos, identificáveis e analisáveis. Quanto às sensatezes e aos vislumbres, cada qual fala por si :P É no discurso que se constitui nos fundamentos da sociedade representativa que não se vislumbra outra coisa, como é de fundo evidente. Não vale a pena procurar alternativas nos jornais ou nos académicos de serviço ;) E não vale a pena repetirmo-nos… As alternativas estão, a meu ver, gritantemente à vista, algumas até como bem dizes, muito piores em termos de liberdade e justiça do que o próprio sistema representativo. É precisamente esse um dos aspectos urgentes do problema do fracasso da representatividade liberal (sejam sensatos, dizem os avatares, toda a alternativa é pior do que nós…). Apresentar-se como a única via possível é apanágio dos desesperados, aliás ;) Não estamos na época e situação do Churchill, e para estas coisas é sempre preciso saber olhar para o presente.
« A lei pune quem infringe. » Boa. Como é evidente em inúmeros casos, e alguns até bem mediáticos (meu deus, ao que isto chegou ;)da « justiça » portuguesa :P E não se trata de ela funcionar mal, senão dir-se-ia que se deve melhorar o sistema de justiça (como aliás dizem os avatares, sem suspeitarem que a inanidade e total ineficácia do que dizem seja devida às próprias estruturas do sistema, e não duma má vontade circunstancial dos agentes dos sistemas). Trata-se da própria sociedade defender aqueles que detém os valores que a orientam e sustém, ou se preferires, destes terem imediatamente as armas de defesa convenientes ao habitat socio-político. E penso, e aqui já tem que ver com o tema do blog, que ao pensar juridicamente, devemos ter em conta os sistema reais, e não uma mera abstracção ética.
Mas eu sou um nabo nestas coisas do direito.
Tratam-se de suspeitas dum leigo ;)
Como é que contabilizam os abortos legais e ilegais? Não tenho dados nenhuns sobre a matéria.
Abraço.
A contagem dos abortos ilegais é um bom tema para um post. Os números são tão díspares como os dos sindicatos e do governo em dia de greve.
Eu referia-me aos abortos legais após a legalização. A tendência é sempre de subida.
Huuuuum... ok ;) Mas não faltaria sabermos se os abortos nos países em que são ilegais têm ou não tendência de subida, para aferir-se se o factor de subida se deve à legalização ou ilegalização, ou a outros factores?... Que cada vez haja mais gente a abortar, legal ou ilegalmente, não é coisa que me surpreenda muito...
Enviar um comentário
<< Home