Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Vasco, problema

Foi num sábado de manhã que ocorreu aquele malfadado telefonema, mais precisamente as nove e oito em dígitos vermelhos do meu despertador como que olhavam para mim com escárnio e vil dizer, enquanto o estridente toque do telemóvel deflagrava dentro da minha cabeça dorida, pousado com igual sarcasmo no sofá a três metros e setenta igualmente malfadados metros da minha cama. O facto de andar a trabalhar como um forçado, com briefings atrás de briefings, e de ter na sexta anterior abusado dos clorofórmicos whiskies pós-jantar, não me estava a ajudar a decidir com clareza se sim ou não me deveria levantar para atender aquela chamada que o mínimo de civilidade fazia pressupor que o mais provável seria tratar-se de uma urgência qualquer. A vantagem deste torpor físico e mental seria o da dissolução temporal da chamada, e uma simples mensagem de voz deixar-me-ia legitimidade para ouvi-la após um mais pacífico despertar. Mas a chamada não me estava a dar adiamento, caindo e voltando a erguer-se logo de seguida numa insistência cujo desespero ameaçava contaminar-me o cansaço e a ressaca.

- Estou? tartamudeei quase em queda de borco na minha tentativa de me sentar no sofá, e Merda! exclamei logo de seguida acompanhando a queda de todos os meus papeis de trabalho que se espalharam confusos à volta do sofá, Estou? repeti já sentado, Estou, bolas!...

- Alô, exclamou o outro lado que reconheci logo pela voz, que raio me queria àquela hora e dia o mafarrico do meu irmão?...

- Alô a porra, sabes que horas são, meu sacripanta?... mas era o meu irmão, e não pude deixar de dizer isto sorrindo. Deixa-me só ir buscar um cigarro, volvi remexendo nos papeis confusos até encontrar o amarrotado maço e voltando a sentar-me, Diz, caramelo, espero que seja mesmo importante, e o cigarro estava ainda mais torto que a minha cabeça, apontava para baixo como que querendo fugir à chama do isqueiro.

- Estou metido num sarilho, disse ele enquanto eu dava a primeira baforada, A Alice engravidou, e nisto engasguei-me no fumo e desatei a tossir, Espera aí, merda, disse-lhe eu, Que é que estás para aí a dizer?... Quando é que souberam?...

- Ontem à tarde… Nem dormi nem nada. Já está de cinco ou seis semanas e… vamos abortar.

- …

- Eu não sei é nada disto, onde é que se faz, como… E lembrei-me de ti. Eu sei o que tu pensas destas coisas mas… não sei, não vou abrir um jornal e ir a Espanha à primeira clínica que estiver anunciada… Tu conheces tanta gente…

- …

- Vasco, preciso mesmo de ajuda.

- Foda-se, catraio, que merda… Nunca ouviste falar do preservativo?...

- Poupa-me aos teus sarcasmos… Sabes como é que é… Claro que usamos preservativo…

- Eu não estou farto de te dizer que se não estás mesmo numa de ter filhos, deves pô-lo logo no início e não andar a brincar aos John Holmes...

Um silêncio interpôs-se, enfim, era natural, mas eu não estava em estado nem para aferir da densidade e peso desse silêncio.

- Olha, deixa-me tomar um duche e um café que eu já te ligo… Tu estás bem?...

- Estou, estou… Quer dizer, estou uma pilha de nervos, mas de resto… Vai lá tomar o duche e depois liga-me.

- Ok, puto. Até já. Tenta acalmar-te. Fizeste bem em telefonar-me. Alguma vez te deixei ficar mal? e de imediato me lembrei de tantas vezes que o deixara evidentemente ficar mal, mas ele percebia o que eu queria dizer.

Deixei cair o telemóvel para o meio dos papeis espalhados no chão, e ali fiquei tentando tomar consciência do telefonema, o cigarro torto fumegando-me nos lábios e a cabeça latejando.

Os dígitos do relógio anunciavam as nove e dezasseis.






Nota: Por motivos e motores de vida e pensamento, eu não votarei no dito referendo nem não, nem sim, nem talvez. O que faço aqui indica-se nestoutra nota.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Deixei-te comentário na 'nota' das notas e notas, mas reparei que está já lá muito para baixo e por isso passo-to para aqui:

Vitor,

Também eu te dou os parabens pela tua coragem, e, respeitando a tua decisão e sem querer intrometer-me, pergunto somente se este não seria o momento para uma aprofundada reflexão.
O nosso caminho é feito de quedas, altos e baixos, e portanto, nem sempre fácil. Provas e mais provas que nos servem para nos colocarmos ora de um lado ou outro e a dar-nos certezas. Das quedas há que levantar e seguir, de outro modo, com outra verdade e visão. Com maior firmeza.
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida" - Se crês que as Sagradas Escrituras são a Palavra de Deus verdadeira, crês que só existe um caminho : Jesus. Que só existe uma verdade e que só existe vida em Jesus - a Verdade Absoluta.

Caímos por variadíssimas razões, tentações, e, levantamo-nos com outras; outra verdade e certeza. Outras decisões. É para tal que nos servem.

Não existem meias-verdades portanto. «Seja a tua palavra "Sim, sim; não, não" (Mateus 5:37) e só assim estamos no Caminho - para a Vida, crendo igualmente na Sua Misericórdia e infinita bondade e única Verdade.
Com toda a liberdade de (O) escolher. Este é um desses momentos, importante, que nos é dado.

Um grande abraço.

3:15 da tarde  
Blogger Vítor Mácula said...

Ai, Malu, assim sou forçado a quebrar novamente a regra do mutismo, nem que seja para te deixar um beijinho ;)

Mas todos os momentos dados são importantes, e aptos a uma profunda reflexão :P

Referes-te provavelmente à minha decisão de não ir votar no referendo?...

A César o que é de César, e eu respeito profundamente a pax romana e a sua gestão da multiculturalidade... Como sabes, Pilatos não estava nada numa de O matar...

Isto seria uma conversa comprida para este domingo... E a minha esposa espera-me para irmos ao café ;)

A verdade é que não tenho ideia definida acerca da legislação; embora a tenha relativamente ao aborto enquanto pecado.

Abreijos grandes.

5:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Claro que me referia e somente à tua decisão de não votar. Ia lá querer ser mais papista que o Papa? :o

Também não sabia da regra do mutismo... Alguem me diz se é verdade ou não que do último referendo, ganhou a vida por um voto?

Abreijo recebido.

2:53 da manhã  
Blogger Vítor Mácula said...

Não é uma regra dogmática... Trata-se mais dum cuidado relativamente à conjugação de não ter uma ideia definida e a tensão dialogal do tema... E tambem para não haver muito granel relativamente ao teor geral do blog... Isto é uma espécie de assembleia, não é bem a minha casa... ;);)

Junta-se a estes discutíveis motivos, o meu profundo ou superficial desprezo pela falácia em que se tornou a nossa democracia representativa, mas isso, é talvez outra conversa... E isto a tal ponto, que nem sei se a vida ganhou por um voto, ou sequer se ganhou, mau ou bom grado a representação colocada no púlpito do espectáculo, que é a que se sabe ou pensa saber (que no último referendo ganhou... :P

10:12 da manhã  

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