Valério, acto dois
Lembro-me : estava deitado na cama, de óculos escuros, um feliz vazio crescendo dentro de mim como uma pacificação, quando ela entrou e de imediato tirei os óculos, algo no seu rosto e presença me instigou a querer olhá-la claramente, e sobretudo que ela a mim nos olhos pudesse fitar-me ou fitar-se, pois que um peso trazia ela visivelmente, algo que arrastava e a fazia arrastar-se quarto fora até à beira da cama onde se sentou, e sem olhar para mim mas para a parede ou para a janela, disse :
- Estou grávida, gatinho, e suspirou, e baixou o seu olhar para o chão, Grávida… e o silêncio que se seguiu era como um vazio infeliz substituindo-se à minha pequena beatitude. Ela olhou para mim, e enfrentou aquele vazio : Vamos ter que fazer qualquer coisa. Nós não podemos cuidar dum filho.
Mantive-me calado. Eu era um tonto na altura, muito mais do que agora o sou. Ela é que sabia. Afinal, ela era a mulher. E também a adulta. Talvez até não fosse meu o filho, mas também, que raio quer isso dizer de um filho ser nosso ? Eu é que estava com ela, como mais ninguém estava, na intimidade do sono e do coração, os outros apenas a fodiam, não dormiam com ela. Os outros eram o nosso ganha-pão, companheiros ou amigos na melhor e quão rara das hipóteses. Eu era o espelho do seu rosto, o resto do seu corpo, ou pelo menos queria sê-lo. A sua dor arrepanhava-se-me no estômago como uma úlcera.
Acendi dois cigarros e passei-lhe um aproximando o meu corpo do dela, oh Deus, como eu a amava, como o meu corpo tremia e suava à mínima aproximação, ao mínimo odor e tacto… mas como já ocorrera noutros menos graves momentos, uma voz demoníaca surdamente dizia em mim : Eu sou o homem ! Eu sou o homem ! Eu sou o homem ! uma voz que em mim nascia do medo masculino, este orgulho que vem do fundo dos tempos e do útero, e também oh estranheza, do meu imediato paterno, uma voz que calei prontamente : - Que queres fazer ? agarrando-lhe nas mãos e beijando-as, oh a doce confusão da vida, estes momentos mesclados de dor e felicidade, o fel e o mel no mesmo trago, todos sabemos do que falo.
- Vamos ter de abortar, disse ela, e que sabia eu disso ou do que fosse, eu que nem atinara com aquela bodega de borracha. E aquela frase caiu como um rochedo numa melodia de algodão, tinha qualquer coisa de terrível. Meu ou não, algo crescia dentro dela, algo que poderia ter o rosto e a felicidade do amor, do nosso amor. E dolorosamente ela o disse. Pois que outra coisa poderíamos fazer ? Ia eu arranjar dinheiro enquanto ela se iluminava por dentro ? E faríamos o quê mais ? O meu pai já devia ter posto a bófia atrás de mim, nada de grave, enfim, apenas um puto fugido, mas depois o quê ? Íamos os dois viver com ele para ele suicidá-la a ela também ? Ou eu ter que acabar por atirá-lo a ele para as urtigas da morte ? E depois ela não podia ir para a luz do dia, o seu caso era bem pior que o meu, uma sentença de morte estava suspensa sobre os seus dias, a executar-se mal ela se desse a ver. E eles não perdoavam, era o que ela me dizia, eles não perdoavam. Merda de mundo, este que construímos.
- Hoje não vou trabalhar, disse ela apagando o cigarro e aninhando-se em mim, vamos ficar aqui os dois na cama a comer bolachas e a mimar-nos, e todo eu pobre puto tonto a acolhi, porque estava tudo bem, estava tudo certo, eu e ela ali estávamos, e até amanhã pelo menos, isso, ninguém no-lo tiraria.
Nota do Vítor: Por motivos e motores de vida e pensamento, eu não votarei no dito referendo nem não, nem sim, nem talvez. O que faço aqui indica-se nestoutra nota.
8 Comments:
Não é curioso que, quando se apresentam casos pessoais como este, o abstracto transforma-se em concreto, o princípio, claro e incisivo, ganha contornos complexos e difusos, e ninguém se atreve a comentar...? ;)
Um abraço.
Caro Vítor,
À parte o elogio merecido pela qualidade literária dos textos, tenho de dizer-te que estes "casos da vida" (porque literatura, mas imitando e remetendo para situações concretas que todos imaginamos e/ou vivemos) não me comovem nem me demovem. :)
Ao contrário do que diz o David, no comentário anterior, não é por a teorização abstracta ganhar assim contornos difusos e complexos (ou o inverso...) que não me atrevo a comentar mais vezes.
É antes porque, diante de situações descritas assim, que queres que te diga? Nada!
Por cada história comovedora que tu possas colocar aqui apontando num certo sentido (que eu percebo, aceito e considero pertinente pensar), qualquer um de nós poderia escrever outra história comovedora, apontando no sentido inverso.
Tudo isto porque, fora da literatura e da visão mais ou menos romântica que cada um possa ter da vida, as minhas decisões pessoais estão sempre sujeitas à regulamentação externa, em situações que envolvem assuntos que me transcendem. Posso ter mil razões comovedoras para ir a 150Km/h na auto-estrada... mas não serão essas razões que anulam a legitimidade da lei que mo proíbe... porque aceite de forma generalizada, em nome do bem comum. O exemplo é estúpido, mas serve para ilustrar o que pretendo dizer.
No caso do aborto há muitas situações que nos apertam o coração. Que compreendemos, lamentamos e temos a obrigação de minorar. Mas isso não altera o essencial. E o essencial, em minha opinião (e sendo apenas isso, reclamo o direito de a manter e proclamar e votar nesse sentido) é que o aborto é um mal que não deve ser aceite socialmente como um meio legítimo.
Olá, David Enoch, e um abraço.
Olá, Manel.
Bem bem mau mau Maria… eu vou ignorar o facto de as situações concretas não te comoverem nem demoverem, e nada teres a dizer perante quem tas apresenta em primeira ou segunda mão, limitando-me nesse caso a dar graças aos céus por não seres legislador :P
Quanto ao resto, diversos problemas se me apresentam:
1. A legitimação jurídica não é ética, embora evidentemente devam inter-relacionar-se. Note-se que felizmente assim é, ou então estaríamos todos presos, ou no mínimo pagando diariamente multas ;) Não é legítima a passagem directa dum mal moral para a sua proibição legal. Quero dizer, não é legítima na sociedade portuguesa (para o caso:) pois essa relação não corresponde aos elementos constitutivos do direito liberal que nos rege. E ou se combate este (e a sociedade que lhe corresponde) ou está-se simplesmente em equívoco societal, político e jurídico. Ou então a tentar miná-lo subrepticiamente (como faz por exemplo o magistério romano com a sua noção de “direito natural”, ou melhor, com os conteúdos que lhe confere). Note-se que também o divórcio, a embriaguez físico-química, o adultério, a mentira pessoal, a poluição atmosférica, a indiferença social, o tabagismo, a masturbação compulsiva etc etc etc também podem ser aferidos enquanto males éticos (aferidos e discutidos, evidentemente). Não pretendo equivalê-los no seu grau de malignidade, mas mostrar que há uma distinção entre lei civil (regulamento do comportamento dos cidadãos) e as questões éticas.
2. Mas mesmo numa sociedade ético-jurídica, a relação não é directa. Passa-se que a jurisdição ética é da ordem do geral, e a realidade, como se sabe, é da ordem do particular. A focagem jurisprudente na transição do geral para o particular levanta várias questões. A primeira é o perigo de substancializar o geral, e deixar de lado que não é o geral que deve subsumir o real mas sim, no limite, o inverso (por isso, por exemplo, ir às putas ou aos putos e apaixonar-se pela vizinha ou vizinho do lado são adultérios muito diferentes). Depois, que nos casos limite de decisão humana, muitas vezes, ambos os planos da alternativa são eticamente válidos, e nenhuma ratio se pode com evidência declarar correcta: matar ou não matar o agressor assassino, por exemplo. Se há casos de decisão abortiva do género, para além dos contemplados na lei existente, deixo aos demais essa inquirição. Reitero no entanto que o direito que nos rege não é ético-jurídico, caso o ponto anterior já estiver esquecido.
3. Não resisto a repetir que as histórias comovedoras apontando no sentido inverso das maternidades problemáticas não põem o problema do aborto. Se todos fossemos felizes, desangustiados e bonzinhos, nem sequer seriam preciso leis. Esta bodega é a terra, não é o paraíso, e não se transforma a primeira no segundo por imposição legal – muito pelo contrário.
4. Outras questões que se me põem estão nos meus comentários no post do /me “E a religião?” de quinta-feira 30/11, para o qual remeto, pondo aqui no entanto esta parte:
“Porque o problema do aborto põe-se quando a mulher ou o casal, numa geralmente dolorosa e confusa decisão decidem – para bem da vida e dos filhos que almejam ter ou não ter – ser melhor abortar, ou não serem pais. Quando não faz sentido prático, psicológico, biológico, etc levar a gravidez até ao fim. Mesmo a mais displicente das decisões – que eu nem sei se existe – acerca de tal, remete para uma incapacidade de maternidade e paternidade, e por extensão uma defesa da “qualidade” destas. Não basta nascer para isso ser um bem para o próprio, para os próximos e para a sociedade. E uma instância que tal afirme, terá sempre, explícita ou inexplicitamente, que invocar um princípio acima do indivíduo, dos grupos e da sociedade no geral.”
Apenas para perguntar-te: Qual essa instância, e donde a sua validade e legitimação?
5. Deixo para outra ocasião as questões entre ética e ontologia, assim como a pertinente relação entre verdade e ficção literária.
6. Porventura um dia surgirá um post com estas minhas questões alinhavadas. Passa-se que considero que a argumentação dum lado e doutro é célere e por demais conhecida, e penso que só por má fé se obnubila a posição contrária. Daí parecer-me à partida não ter muito interesse pôr problemas que penso que, em consciência, toda a gente sabe. Mas estou a ver que talvez faça sentido… Não sei…
7. Por fim, reitero que sou contra o aborto, como penso que 99, 9999999999999999 % das pessoas. É verdade que a legislação me põe problemas, e que, visto não ir votar, por razões que nada têm que ver com o aborto, não aprofundei muito estas questões. Além disso, o direito é uma seca ;);)
8. Penso que também faz parte da discussão a noção de maternidade/paternidade responsável, e que nenhuma lei alguma vez transformará por magia situações concretas e reais, quer estas te comovam ou não.
9. Ora pois, a ignorância inicialmente afirmada, foi-o apenas retoricamente ;) Até porque não acredito que não te comovam nem demovam (falo das situações concretas, e não dos meus textos) e o mais provável é não ter de agradecer aos céus o não seres legislador.
10. Gostaria que alguém me explicasse também esse ambíguo conceito de “crime sem pena”. O Estado liberal não tem de ser garante simbólico de valores morais, estéticos ou religiosos…
Abraço.
PS: Isto saiu um bocado crispado, admito. Mas que raio, foi o não comover nem demover e nada a dizer que me aborreceu as entranhas :P
Caro Vitor,
Não te preocupes quanto à crispação porque, eu bem sei, fora a esgrima de argumentos que esta questão sempre levanta, tenho claro que os dois estamos no debate de boa fé e sem querer "derrotar" ninguém.
Eu sei, como tu próprio o admites, que percebeste o facto de eu dizer que não me comovem nem demovem as situações concretas. Referia-me a um género argumentativo e não a uma postura vital.
Resumindo muito, começo por dizer que toda a Lei tem uma função ética, na medida em que te diz o que podes e não podes fazer e, por essa via, o que está certo (ou pelo menos é lícito) e o que está errado.
Naturalmente, a legislação não tem de se submeter a éticas particulares ou enraizadas em instâncias que não dizem respeito a todos.
Acontece que a democracia, a política e o direito não são coisas etéreas e completamente fora do mundo dos homens. Pelo contrário. São artes do possível e orientam-se para a construção e regulamentação de "uma certa ideia de sociedade". Neste sentido, também é função da Lei estabelecer mínimos e apontar num certo sentido civilizacional.
A sociedade que temos hoje deve-se, em grande parte, a esta função pedagógica dos nossos sistemas jurídicos.
Não sou jurista nem nada que se pareça e, portanto, abstenho-me de fazer aqui mais comentários sobre filosofia do direito. Mas não é preciso ser jurista para estar convencido que o papel de estabelecimento de mínimos civilizacionais é inquestionável. Ora, toda esta conversa vai desembocar numa questão que é a essencial: devemos ou não proteger a vida humana? DEvemos ou não aceitar essa defesa como princípio mínimo inviolável? Eu acho que sim. E não descubro nisto qualquer motivação religiosa. Entendo que a evolução civilizacional se faz por esta nossa capacidade de estabelecer consensos e de os assegurar para além das razões individuais que possam existir em cada momento e em cada situação concreta.
O aborto insere-se, em meu entender, nesta perspectiva.
Invocas uma entidade a que chamas Estado Liberal. Ora bem: esse estado liberal assenta nas liberdades individuais. O problema, nesta questão, é saber onde termina a liberdade individual da mãe e começam os direitos do filho. E já estamos, outra vez, nesse campo que tu achas que "toda a gente sabe", dos argumentos básicos e corriqueiros... Pois. Mas não é possível ter uma opinião sobre esta matéria sem que este ponto esteja claro. Toda a filosofia e literatura que queiramos pôr à volta, vai desembocar aqui.
Compreendo que haja muita gente que, conscientemente, acha legítimo deixar aí, no princípio da gravidez, um "tempo de ninguém", abrindo possibilidades liberalizadoras. Compreendo. Mas não concordo. E, mais uma vez, não tem nada a ver com religião. A biologia e a lógica bastam.
Pedes que alguém te explique essa história do "crime sem pena". Atendendo a que eu sou um dos defensores dessa ideia, senti-me interpelado.
Dir-te-ia que o conceito de "crime sem pena" é o equivalente, em termos de ambiguidade argumentativa, ao conceito desse "tempo de ninguém" usado pelos defensores do sim. Neste caso, opta-se por fechar os olhos e não estabelecer limites, em nome da liberdade da mulher e de muitos outros argumentos razoáveis. Defender o "crime sem pena" é ter claro que o aborto é crime, na medida em que se reconhece a existencia da vida nas primeiras dez semanas de gestação, embora, em nome razoabilidade dos argumentos do outro lado, se considere desumana a aplicação de uma pena em situações que são, per se, penalizadoras.
Isto supõe ambiguidade? Claro. A diferença entre uma e outra situação é que, no segundo caso, não morre ninguém e salvaguarda-se o tal princípio dos mínimos. Já não me parece pouco.
"O divórcio, a embriaguez físico-química, o adultério, a mentira pessoal, a poluição atmosférica, a indiferença social, o tabagismo, a masturbação compulsiva" não acabam com a vida de outrem. Esse é o ponto. Pode um pai ou uma mãe que tem a sua vida pessoal e social completamente destruída porque tem de cuidar de um deficiente profundo matar a fonte dos seus problemas?
Bom dia, Manel.
Bem, a crispação desagrada-me principalmente por si, na sua oposição à pacificação interior requerida à pequena larva que sou. E claro, não por algum equívoco ou desavença contigo (para além de essas coisas não me preocuparem muito, no sentido em que a dialogalidade e convívio implica para mim a aceitação de muitas diferenças, "conhecemo-nos" há suficiente tempo para não nos preocuparmos muito com isso, penso eu, quero dizer que podem acatar-se abusos e desatinar caso disso seja, mas falo por mim, claro 2;)
Quanto ao resto, soltei considerações num novo post, porque me pareceu que poderia ser interessante trazer as coisas aqui em jogo à liça mais visível.
Abreijo!
David, incluí a tua interpelação no novo post referido, visto estarem lá elementos relativos a ela, a saber: como definir esse outrém humano e pessoal desde a concepção. Um abraço.
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