Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

870


"A 'questão do aborto' em Portugal é uma história já adulta. Há mais de 20 anos, quando alguns dos actuais eleitores não eram sequer nascidos, a discussão centrava-se à volta do início da vida humana. Por um lado, os pró-vida argumentavam que esta começava no princípio, na concepção. Por outro lado, os pró-escolha defendiam que ninguém sabia quando começava a vida humana, e um "conjunto de células" nas primeiras semanas de gravidez não o era certamente. Os dados científicos eram escassos e havia um grande desconhecimento sobre o desenvolvimento do feto.
Há oito anos o primeiro referendo sobre a IVG (interrupção voluntária da gravidez em PPC, português politicamente correcto) mostrou uma clivagem entre a opinião pública e a publicada: teve uma abstenção superior a 70 por cento e o "não" ganhou.
Nos últimos oito anos assistimos a várias tentativas de colocar a questão do aborto na agenda política. O "flagelo do aborto clandestino" foi considerado argumento principal, apesar de os escassos e incompletos dados oficiais mostrarem um número reduzido de internamentos por complicações de aborto fora do quadro legal (1426 internamentos em 2004, 89 por cento por aborto incompleto ou retido, apenas 56 infecções e ausência de mortalidade; dados da Direcção-Geral de Saúde). Foi-nos repetidamente perguntado se queríamos "mandar as mulheres para a prisão". Contudo, as poucas mulheres julgadas até hoje tinham todas abortado com mais de dez semanas de gravidez e daí não resultaram penas de prisão. A eventual legalização do aborto até às dez semanas "por opção da mulher" criminaliza-o a partir das dez semanas e um dia, pelo que estas questões da humilhação, julgamento e eventual condenação se mantêm a partir daí.
A mãe deve ser compreendida e ajudada, mas não podemos desviar a nossa atenção da outra vida em questão, a do feto, que, por ser frágil e indefesa, depende da nossa protecção. Porque actualmente, passados mais de 20 anos, já não pode ser dito que o feto não é vida, pois a ciência mostrou-o de um modo claro e comovente. Pode causar surpresa a alguns, mas é hoje consensual entre a comunidade científica que, às dez semanas (para aplicar o limite arbitrariamente proposto pelo actual referendo), o tal "conjunto de células" se encontra organizado de um modo que é impossível não ser reconhecido como um ser humano.
Avanços recentes na cardiologia fetal mostram que o desenvolvimento do coração ocorre entre as três e as seis semanas de gestação, e que por volta do 20.º dia este já bate. Entre a 8.ª e a 9.ª semana, o coração está formado com as estruturas cardíacas, ocupando já as posições e realizando as suas funções definitivas. Às dez semanas, o coração do feto assemelha-se muito ao coração adulto, quer externa, quer internamente. As mais delicadas estruturas cardíacas, como os milimétricos folhetos da válvula aórtica, estão formadas e vão continuar a sua maturação e diferenciação. Às dez semanas, a função circulatória está estabelecida e só vai alterar-se após o bebé nascer, com a adaptação à respiração. O coração bate com regularidade e variabilidade, e a complexidade das funções sistólica e diastólica é comparável à dos adultos.
Sem estigmatizar as grávidas, antes acolhendo-as e aos seus bebés, é nosso dever como profissionais de saúde tornar as "barrigas transparentes", de modo a ajudar os portugueses a compreender que lá dentro está uma pessoa, que, se tiver dez semanas de gestação, tem um coração que bateu 870 vezes durante a leitura deste artigo.

José Diogo Ferreira Martins
Cardiologista pediátrico, in Publico, 12.12.2006

22 Comments:

Blogger Vítor Mácula said...

Ah bom, estava a ver que não... ;)

6:58 da tarde  
Blogger Manuel said...

Pois, pois...:)

7:27 da tarde  
Blogger CA said...

Penso que se pode fundamentar o "não" sem considerar que existe pessoa humana desde a concepção. Ligar as duas coisas pode afastar pessoas do "não" sem necessidade.

O que se passa nos primeiros dias a seguir à concepção e até à nidação é algo que permite demasiadas variações para se poder calmamente presumir que existe uma pessoa desde o "momento" da concepção. E o "momento" está entre aspas precisamente porque é um processo extremamente complexo que leva até 30 horas!

Na linha do que o Vítor escreveu em comentários anteriores, assumir que desde o início existe uma pessoa tem vastíssimas consequências práticas em diversas áreas da vida, que os próprios defensores dessa personalização do zigoto muitas vezes ignoram.

A própria prática mostra que se praticamente ninguém leva até às últimas consequências a personalização do zigoto, muitos de nós atribuem um valor progressivamente maior ao ser em desenvolvimento.

Às dez semanas já existe um ser com um valor que não pode ser considerado nulo. Compreendo que esse valor possa ser posto em causa por circunstâncias ligadas à mãe. Não aceito a banalização do aborto que me parece politicamente envolvida na pergunta do referendo.

10:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Manuel,

Esta ajuda para compreender o que está dentro da barriga da grávida não esclarece grande coisa. Acho que o cardiologista faz confusão entre o que é um ser humano e o que é uma pessoa. Não precisam ser necessariamente a mesma coisa. Um ser humano pode ser considerado em dois sentidos distintos: o biológico de pertença à espécie e o que convencionamos quando atribuimos o estatuto de pessoa a um ser. Esta é a linha de argumentação de quem defende a despenalização e convém não ignorá-la senão o debate não sai do sítio.

O bater do coração do feto diz-me muito pouco. O coração do feto de um cão também segue um percurso idêntico e ninguém se preocupa com ele. A questão aqui é que se trata de um ser humano e consequentemente obriga-nos a pensar o que o faz tão diferente do feto de cão. Como esse feto não possui nenhuma das características que valorizamos no ser humano, a única consideração que podemos fazer é que esse ser tem o potencial de se vir a tornar numa pessoa. Isso fá-lo diferente do feto de cão mas leva a discussão necessariamente para a questão da potencialidade que é substancialmente diferente de se falar de uma pessoa que já existe.

luis v

12:03 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luis V,
1. ser humano vs ser pessoa
Não me parece que haja confusão da parte do autor entre ser humano e ser pessoa. A meu ver, a questão está apenas no facto de o autor partir logo do princípio de que uma noção abstrata não pode justificar a morte dum ser humano - isto, humanamente, é tão razoável que se torna muito fácil de aceitar como válido. O Luis é capaz de me dizer em que momento alguém se torna pessoa?

2. Quanto ao coração
Peço-lhe que leia outra vez estas palavras, do texto em comentário: « Entre a 8ª e a 9ª semana o coração está formado com as estruturas cardíacas ocupando já as posições e realizando as suas funções definitivas. Às 10 semanas o coração do feto assemelha-se muito ao coração adulto, quer externa, quer internamente. As mais delicadas estruturas cardíacas, como os milimétricos folhetos da válvula aórtica, estão formadas e vão continuar a sua maturação e diferenciação. Às 10 semanas, a função circulatória está estabelecida e só vai alterar-se após o bebé nascer, com a adaptação à respiração. O coração bate com regularidade e variabilidade, e a complexidade das funções sistólica e diastólica são comparáveis à dos adultos. » (o sublinhado é meu)
Se não puder contrariá-las com fundamentação válida (no sentido referido em 1), então por favor repense o que disse.

3. Potencial de ser pessoa
A meu ver, a "pessoalidade" dum ser humano vai-se construindo - se não concorda comigo, lá está, é abstrato... Nesta linha, pode dizer-se que ao longo de toda a nossa vida somos seres potenciais porque temos projectos, e isso não faz de nós não-humanos, nem não-pessoas. A diferença é que o projecto do zigoto, do embrião, ou do feto é crescer fisicamente, assim como o da criança nascida há 1 mês. A partir de certa altura, em fases posteriores da nossa existência humana, torna-se possível surgirem outros projectos mais ricos e complexos (no sentido de ultrapassarem o crescimento meramente físico). É assim, é esta a natureza da existência do ser humano que começou no princípio... o que é que não começa no princípio?

Finalmente: permitir que se possa fazer o abortamento duma vida humana (até as 10 semanas) só porque sim, é humano? Até a minha filha de 5 anos (que é a mais velha dos três) me diz que "porque sim não é resposta"!

Cumprimentos.

12:22 da tarde  
Blogger BLUESMILE said...

A fernanda Cancio responde brilhantemente à abordagem cardíaca. Não consigo linkar daqui mas conselho a leitura do artigo no JN de hoje.


Já agora, ter um coração "comparável" ao de um adulto não dá a nenhum ser o estatuto de pessoa humana.

Todos os porcos têm um coração extraordinarimente comparável ao de um ser humano adulto. Tão comparável que existem xenotransplantes.
Um cadáver em morte cerebral pode ter um coração a bater.
Um feto anencéfalo tem um coração que bate.

2:06 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

rui fernandes,

Compreendi o porquê do autor tratar "pessoa" e "ser humano" indistintamente. Devo deduzir então que matar um embrião ou um ser humano adulto é igualmente grave? Que são ambos homicídios? Se não, porquê? Ou seja, como devemos diferenciar as duas situações?

Para mim esta questão não se põe simplesmente. O embrião não tem direito à vida porque não é um ser senciente, não é racional, consciente ou autoconsciente. A pertença à espécie humana não é suficiente para valorizar a sua vida.

Também não concordo que a noção de pessoa seja abstracta. É-se pessoa quando se nasce e existem fortes razões para que assim seja.

Quanto ao seu ponto dois, não pretendi refutar o que o cardiologista disse, ele saberá muito melhor que eu. O que contestei foi a importância dos factos que ele enunciou para o debate sobre o aborto.

No ponto 3 põe a tónica na prossecução do projecto em vez do argumento mais comum da potencialidade. A meu ver, a potencialidade do feto continua a ser a única argumentação válida em defesa do seu direito à vida. Válida não por estar correcta mas porque é indecisiva, o que torna a discussão em torno da potencialidade um somar de argumentos inconclusivos para fazer a balança pender mais para um lado ou para outro.

A ideia do projecto não me parece muito sólida. As minhas unhas têm o projecto de crescer. O feto de uma vaca tem o seu projecto também. O que torna o projecto do feto humano mais valioso que os outros?

Numa coisa estamos de acordo, o "porque sim" e, já agora, o "porque não" não são resposta.

melhores cumprimentos,
luis v

2:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estava à procura do tal artigo do JN e deparei-me com esta notícia: Coração artificial sem pulsação

luis v

2:17 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luis,
«A pertença à espécie humana não é suficiente para valorizar a sua vida. »
Estou perplexo! Perante este entendimento, nada mais posso dizer, senão perguntar: é isto humanismo? (repare, David)
Cumprimentos,
Rui

2:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bluesmile,
Já agora, concorda com a frase do Luís que destaquei?
É que se não concorda, poderei responder-lhe.
Rui

4:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui Fernandes,

Diga-me qual é a diferença substancial entre esta frase

"A pertença à espécie humana É suficiente para valorizar a sua vida"

que deduzo que subscreva, e esta

"A pertença à raça branca é suficiente para valorizar mais a vida do que a de outras raças."

Sobre o especismo existe uma entrada na wikipedia. Curiosamente tem no fundo uma ligação, nos artigos relacionados, para humanismo.

Sinceramente gostaria de conhecer melhor as posições do não. Por isso perguntei se matar um embrião humano é igualmente grave a matar um ser humano adulto. São ambas homicídio?

Serão comportáveis as alegações sobre o valor dos batimentos do coração humano quando já se consegue viver sem coração?

Cumprimentos
luis v

6:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luis,
1. A diferença é mesmo substancial. Uma frase não tem nada a ver com a outra (independentemente do que diga o autor dum qualquer artigo na wikipedia, ou aqueles que ele refira). A segunda frase tem subjacente um critério perfeitamente arbitrário e, mais, diverge da primeira na medida em que a valoração que faz se não restringe ao carácter humano do ser, mas vai buscar características de côr ou feitio, ou seja o que for que se determine arbitrariamente. Aliás, este é um processo semelhante ao que o Luís sugere, quando avança o critério igualmente arbitrário da pessoalidade, nos termos (abstratos) em que o faz: «É-se pessoa quando se nasce e existem fortes razões para que assim seja.»
(Agora penso de mim para comigo: mas por que razão o facto de a existência do Homem começar por ser apenas biológica [como aliás não podia deixar de ser] lhe há-de tirar valor enquanto assim é?)

2. O Luis gostaria de conhecer melhor as posições do não, como se duma raridade se tratasse? A base de pensamento do Luís, essa sim, é que poderia suscitar a curiosidade dum estudioso. Repare: não há nada mais normal e natural do que considerar-se que qualquer vida humana reserva em si valor suficiente para que se lho reconheça - é uma faculdade, não é um direito. Esta é uma atitude elementar de humildade perante a Natureza, cujo esplendoroso engenho ultrapassa a imaginação do homem mais dotado. É o Homem a pôr-se no seu lugar, não sei se me entende...

3. «Por isso perguntei se matar um embrião humano é igualmente grave a matar um ser humano adulto. São ambas homicídio?»
(Terá sido por acaso que não usou a expressão "ser humano" para o embrião? Mas podia...)
Vejamos as coisas nestes termos: o Luís, hoje com 20 anos (digamos) é o mesmo indivíduo que era no princípio (quando a sua existência começou) - quer queira, quer não (falo de individualidade e não de identidade). Mas, mesmo que deseje seguir a linha do potencial, que também faz sentido exactamente porque o "potencial" acompanha toda a existência do ser humano (não apenas no ventre), digo-lhe que matando o ser humano embrião está a impedir que viva um ser humano bébé, criança, jovem e finalmente adulto. Portanto, a resposta é sim.
NOTA: isto é o que eu penso, mas haverá até quem vá votar não no referendo e discorde; é que, mesmo que não seja por razões sustentadas nesta razão de fundo, há muitas outras que justificam tal decisão.

4. As "alegações sobre o valor dos batimentos do coração" (e não só, também sobre a sua situação no tempo) são "comportáveis", sim, na medida em que o coração tem função vital, como sabemos, e muito mais quando se revela ser a sua formação tão precoce. Quanto à outra parte da sua frase, não vejo que relação possa ter com o caso. Está a comparar o incomparável. Tal como compara o coração do cão com o do ser humano. Decerto nem é de propósito, mas está a construir uma falácia.

Cumprimentos,
Rui

8:42 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui Fernandes,

É bom poder debater com respeito de parte a parte.

Sei que a questão do especismo é paralela e é difícil estar a discuti-la "a seco" sem outros desenvolvimentos. É compreensível que não ponha a discriminação em função da espécie ao mesmo nível que a do sexo, da "raça", da religião, da orientação sexual, da classe social. A discussão sobre estas discriminações está vulgarizada na sociedade, sobre o especismo não. Para mim é tão arbitrário discriminar em função espécie como de qualquer das outras que falei. O que não quer dizer que valorize a vida de qualquer animal não humano da mesma forma que a de um ser humano. Não! A vida humana, para mim, tem mais valor. Mas o que não faço é desvalorizar a vida do resto dos animais da forma que a nossa sociedade faz. Neste caso, os critérios para quem é pessoa e para quem tem direito à vida são a chave do problema, tal como no problema do aborto. E concordo consigo quando diz que os critérios não podem ser arbitrários (embora ache que a espécie é um critério arbitrário). Assim, o que me parece que faz os critérios não serem arbitrários é precisamente não serem baseados em sexo, "raça", orientação sexual, classe social, espécie, etc. mas sim em considerações dos interesses e desejos de cada ser em particular (o que nos leva aos conceitos de senciência e consciência).

Com o artigo da Wikipedia não quis invocar nenhum argumento de autoridade mas simplesmente situar o que estava a dizer.

Claro que os argumentos do não não são uma raridade. Agora, há de convir que a esmagadora dos argumentos não são lá muito informados (tal como acontece, aliás, com os do sim). Por exemplo, quero perceber o que leva tanta gente a defender a vida de simples células.

Quanto à minha base de pensamento, não é tão rara como isso, pelo contrário, tenho encontrado muita gente a debater o estatuto do feto (a menos que se referisse à questão do especismo que essa sim é uma raridade).

A sua opinião sobre matar um embrião ser um homicidio traz grandes implicações. Implica que as excepções actuais da lei da IVG para doenças e malformações graves e para os casos de violação não são válidas. Implica também que, coerentemente, considere um homicídio matar uma célula como é o zigoto ou mesmo uma célula estaminal não embrionária. Uma mulher que tome a pílula do dia seguinte poderia assim ser condenada por homicídio premeditado.

Não aceito a ideia que somos a mesma pessoa que eramos quando tinhamos 1 ano ou quando eramos um embrião. Como diria o Sartre, a existência é a mesma mas a essência não tem nada a ver. São as nossas características e as nossas experiências que fazem o que somos. E o embrião não tem as características que fazem de nós diferentes na natureza.

"(Terá sido por acaso que não usou a expressão 'ser humano' para o embrião? Mas podia...)"

Não foi concerteza por acaso. Como já havia dito, geralmente há duas formas das pessoas interpretarem a expressão "ser humano". Como pessoa e como pertencente à espécie Homo sapiens. Assim não há confusão.

Por fim, sobre o coração, que é afinal do que fala o texto do cardiologista, o canadiano de que fala na notícia do JN cujo link coloquei acima não tem coração, o que retira importância ao facto de se ter um coração humano para dignificar a vida. O mesmo se passa com os casos que lembrou bluesmile dos transplantes de corações de porcos ou ainda, acrescento, os simples transplantes entre humanos. O Rui diz que o coração tem função vital, mas a verdade é que não tem. É um simples órgão, substituível. A altura em que se forma o coração é absolutamente irrelevante tal como deixou de ser relevante para marcar a altura da morte.

melhores cumprimentos,
luis v

10:23 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luís,
A minha resposta demorou muito, mas espero que ainda assim venha a tempo de ser lida.

1 -"Para mim é tão arbitrário discriminar em função espécie como de qualquer das outras que falei" / "O que não quer dizer que valorize a vida de qualquer animal não humano da mesma forma que a de um ser humano. Não! A vida humana, para mim, tem mais valor."
Em que ficamos, Luís? Se me permite, uso a sua segunda frase para rebater a primeira: a superioridade sobre as outras espécies é faculdade da natureza humana - se é própria, não é arbitrária.

2- "Por exemplo, quero perceber o que leva tanta gente a defender a vida de simples células."
Simples células!?!?!? Tão "simples" e simultâneamente tão complexas! São células que segundo a segundo, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano vão atingir estadios de desenvolvimento que capacitam o Homem para fazer uma coisa que mais nenhum ser consegue: elaborar pensamento abstracto.
E esta admirável capacidade, curiosamente, volta-se contra o próprio ser humano. O pensamento que o Luís advoga é disto paradigmático. Insisto: não é sensato que o Homem olhe a Natureza com desprezo pela sua magnificência. De longe esta ultrapassa aquele, por mais que isso custe a aceitar.

3- Esclarecimento importante: o sim que exprimi em relação à palavra homicídio, deve ser entendido no sentido literal de eliminação de um ente vivo da espécie humana - foi este o sentido que dei ao meu sim e mais nenhum.
"Implica que as excepções actuais da lei da IVG para doenças e malformações graves e para os casos de violação não são válidas."
Vou dizer-lhe o que penso sobre isto, mas suponho que estejamos ambos conscientes de que estas são situações verdadeiramente excepcionais e delicadas. No referendo, a única excepção imposta é o prazo de 10 semanas, perfeitamente arbitrário.
Antes de mais, quero dizer-lhe o que está na base das considerações que deixo nos dois pontos seguintes: faço uma clara distinção entre o âmbito de acção (digamos assim) da lei e o âmbito de acção da Igreja. Esta tem a obrigação de apelar à santidade, aquela é obrigada a zelar pelo direito à vida, colocando-o em pé de igualdade perante outros valores também imperativos - por exemplo o direito à liberdade e auto-determinação.
- malformações graves: não me parece razoável que a lei permita incluir nesta classificação, por exemplo, a Trossomia 21. Acho por isso que é uma classificação demasiado ambígua. Mas questiono-me se é legítimo que a lei não considere atenuante o facto de os progenitores desejarem abortar em caso de anencefalia - acho que não.
- violação: neste caso, a gravidez foi originada pelo desrespeito da auto-determinação sexual da mulher. Ora, não foi respeitada precisamente a dignidade da pessoa humana da mulher, pois foi transgredido um seu bem jurídico (a autodeterminação sexual). Assim sendo, parece aceitável que a protecção desse bem jurídico possa importar que não seja crime a violação de outro bem jurídico - a vida intra-uterina.
"Implica também que, coerentemente, considere um homicídio matar uma célula como é o zigoto ou mesmo uma célula estaminal não embrionária."
- zigoto: No sentido que esclareci no início deste ponto 3, sim.
- célula estaminal não embrionária: neste caso, nem se pode falar em homicídio. Pode encontrar uma abordagem ético-científica muito interessante da questão aqui: Relatório Sobre Investigação em Células Estaminais ou em: Células estaminais - o sonho da regeneração humana
Do primeiro link, extraio o seguinte texto: «A produção de embriões para fins específicos de investigação consiste em instrumentalizar a vida humana e o respeito que lhe é devido. Neste caso, o embrião deixa de ser um fim em si e transforma-se em coisa, objecto de investigação. Com esta fundamentação a produção de embriões humanos especificamente para fins experimentais é proibida na maioria dos países, embora haja excepções (como o Reino Unido, onde a legalização, que é justificada pela potencial geração de conhecimentos científicos insusceptíveis de serem obtidos por outros meios, se encontra regulada por condições muito estritas e só pode ser autorizada por uma entidade pública criada para o efeito).».
É curiosa a diferença de atitude neste caso e no caso do aborto, quando na verdade o aborto livre (até às 10 semanas) que se propõe não é mais do que transformar o nascituro em coisa.
"Uma mulher que tome a pílula do dia seguinte poderia assim ser condenada por homicídio premeditado."
Neste caso a questão não é tão linear porque, como sabe, se a pílula for tomada antes da ovulação existe a probabilidade de impedir a concepção.

4- "Não aceito a ideia que somos a mesma pessoa que eramos quando tinhamos 1 ano ou quando eramos um embrião.". Mas não foi isso que eu disse... Usei a palavra indivíduo. E não vejo outro remédio senão aceitar a realidade, porque a afirmação "E o embrião não tem as características que fazem de nós diferentes na natureza" não é correcta - então o ADN?

5- "O Rui diz que o coração tem função vital, mas a verdade é que não tem. É um simples órgão, substituível."
Não é "um simples órgão" - esta forma de expressão parece-me tão ligeira... Insisto que tem função vital: se de repente acontecer a alguém a paragem do coração e não houver socorro atempado, essa pessoa morre (para outros órgãos, este exacto cenário nem se aplica). Por outro lado, não se pode falar da "substituição" do coração, meu caro, como se fosse a coisa mais banal do mundo, ou como se não estivesse isenta de riscos seríssimos, ou não implicasse incómodos consideráveis na vida de quem por fatalidade tenha que ser sujeito a tal intervenção. Tenho a certeza de que o Luís não quererá ser contemplado com tal sorte.

6- "Numa coisa estamos de acordo, o "porque sim" e, já agora, o "porque não" não são resposta".
Esta sua frase é já dum comentário mais antigo, mas não a queria esquecer. Ninguém diz não ao aborto usando a resposta "porque não" - há muitas razões e uma fundamental: abortar uma nova vida humana não se pode tornar um direito. Pelo contrário, quem votar sim no referendo está a aceitar que se possa abortar simplesmente "porque sim" (até às 10 semanas). Acho que está clara a diferença.

Cumprimentos,
Rui

1:20 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

errata: onde se lê: "como se não estivesse isenta de riscos seríssimos", deve ler-se "como se estivesse isenta de riscos seríssimos".

3:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui,

Só agora li a sua resposta.

Todo o parágrafo posterior a esse meu excerto que destacou no seu ponto 1 pretendia explicar porque é que não há discriminação mesmo dando mais valor ao ser humano que aos seres não humanos. Basta olharmos para a especificidade de cada um. Um porco, no meu entender, tem direito à vida mas não tem direito a uma educação porque não lhe serviria para nada. Se tiver que escolher entre a vida de um ser humano e a vida de um cão escolho a do ser humano porque o que ele tem a perder é muito mais do que o cão teria. Estas situações são radicalmente diferentes do que designamos normalmente como discriminação porque não partem de um axioma arbitrário mas de uma ética que é igual para todos: a igual consideração de interesses.

Precisamente porque o feto até às 10 semanas não tem interesses é que não creio ser possível dizer que tem o direito à vida.

Quanto às células acho que nunca vou compreender. É natural ter-se dúvidas sobre um feto de 10 semanas. Mas células não. Para mim é meramente uma concepção sacralizada da vida que não devia perpassar para a discussão sobre a IVG (mas sobre isto também temos posições opostas).

Sobre as excepções que a lei actualmente prevê quanto às doenças e malformações graves, a sua posição parece-me perfeitamente coerente. Não concordo, mas é uma conclusão evidente do que defende. No entanto, sobre a violação vejo um problema grave quando passa a focar a responsabilidade da mulher (ou a falta dela) como sendo determinante para a decisão sobre a IVG. Acho que enfraquece os seus argumentos sobre o valor da vida humana levando a pensar que, em última instância, é essa a razão da sua oposição à despenalização. Se no caso da violação a não responsabilidade da mulher pela gravidez se sobrepõe ao valor da vida do feto então poderiam surgir outras situações em que pudessemos dizer que a mulher não pode ser castigada com uma longa gravidez que não deseja. Por exemplo, quando tomou medidas preventivas de contracepção.

O seu ponto 4: o ADN para mim é tão irrelevante como o coração. O que nos torna importantes é o que pensamos e o que sentimos.

Ainda sobre o coração, não me parece que a necessidade de um socorro mais ou menos imediato seja um bom indicador para a importância de um órgão. A substituição do coração só não é perfeitamente banal porque não é fácil de arranjar dadores. Num futuro provável poderemos ver corações clonados ou outra tecnologia qualquer a acabar definitivamente com esse problema.

Por fim, o "porque sim" e o "porque não" são para mim perfeitamente equivalentes se não houver fundamentação para eles. Também posso argumentar que ninguém diz "porque sim" sem ter as suas razões. O Rui está-se obviamente a referir à propaganda que alguns defensores do sim fazem, nomeadamente em camisolas e outros objectos, embora seja sincero e só agora tenha percebido isso. Não sou grande apologista dessa forma de comunicar precisamente por causa dessas ilações que se tiram. No meu entender não se pode simplesmente ignorar que o "porque sim" é o resultado de uma perspectiva sobre a IVG que põe os direitos reprodutivos da mulher como direitos fundamentais negando-se a atribuir valor a um ser que não existe enquanto pessoa. É um slogan que obviamente não pode conter a argumentação que o sustenta. De igual forma quando ouço um "pela vida" posso pensar que é uma ideia desprovida de fundamentação equivalente a um "porque não", já que a vida não tem valor intrínseco.

Agradeço-lhe as ligações que irei ler brevemente.

melhores cumprimentos,
luis v

5:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Luís,

"porque sim" = porque não queremos um filho agora
= porque não queremos ser pais
= porque não estamos preparados para essa responsabilidade
= porque não vou poder ter a carreira que quero
= ...

"pela vida" = porque já existe outra vida humana, e portanto não podemos considerar-nos no direito de atentar contra ela por uma razão qualquer (= "porque sim").

Quero acreditar que não vamos chegar a viver segundo um sistema em que o furto, a burla ou a condução sob o efeito de álcool sejam crime e um atentado directo à vida humana o não seja. A tutela penal traduz um sistema de valores, que deve ter coerência, sob pena de se tornar irracional e incompreensível..

Rui

11:38 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Só mais uma coisa. Ninguém pode dizer que engravidou porque o método contraceptivo falhou, por duas razões:
- hoje em dia, a eficácia dos métodos contraceptivos é praticamente total - o que falha é a sua utilização;
- mesmo que não se concorde com a afirmação anterior, existe sempre a possibilidade de, reponsavelmente, usar redundância na contracepção (ainda por cima há dois envolvidos). Aliás, é o que se faz quando se quer que a probabilidade de falha seja tão pequena como a de ganhar o euromilhões - dou-lhe o exemplo que me é próximo dos sistemas de software críticos, como no caso do controlo de aviões (quando há problemas, actualmente já não são devidos a falhas de software).

12:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui,

Não me importa muito a forma que cada um escolhe para fazer passar a sua mensagem desde que seja feito com correcção. Acho mais legítimo usar um "por"

2:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui,

Não me importa muito a forma que cada um escolhe para fazer passar a sua mensagem desde que seja feito com correcção. Acho mais legítimo usar um "porque não" correndo o risco de se parecer inconsequente e com falta de fundamentação do que falar do coração do feto quando se defende que esse feto já tem direito à vida desde a fecundação. Tem razão quanto à possibilidade de se dever maximizar o efeito dos contraceptivos mas na prática isso não é viável para a grande maioria da população. E se este argumento que usei não é tão forte como isso por causa daquela ideia presente na lei que a ignorância não justifica os actos, também é verdade que enfraquece a ideia da responsabilidade do casal numa gravidez não desejada.

Abraço,
luis v

3:06 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Luís,
Como pode enfraquecer a responsabilidade do casal!? Repare que: a) existe a consciência exacta das consequências possíveis dos actos, antes de os praticar; b) existem hoje, como nunca, condições para evitar a gravidez. Ora, sendo assim, a única coisa que enfraquece a responsabilidade é não querer assumi-la.

Feliz Natal!

7:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Rui,

Bem... é mais responsável o casal que fez sexo com perservativo do que o que o que fez sem contraceptivo nenhum, só isso.

Não festejo o natal mas desejo-lhe a si um Feliz Natal.

3:30 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home