Vanessa, apresentação
Eu não tenho assim muitos estudos, quero dizer que nem acabei o liceu, outras aprendizagens se foram metendo de permeio, e o sedentarismo domesticado nunca foi o meu forte. Até porque a única leitura que gosto é a poesia, coisa impossível de fazer acontecer numa sala de aulas. Ainda o pouco da seiva que consegui retirar da minha passagem pelas escolas, foi o encontro particular com este ou aquele, evidentemente e sempre fora da sala de aulas, e com tendência e veemência para viver-se fora da escola, pelas ruas da cidade onde a vida acontece, assim como a morte.
Por mistérios que a vida poéticamente entretém, na maravilha e no horror, dei comigo a trabalhar num centro do Bom Amor, em Lisboa, na zona de S. Sebastião da Pedreira. Trata-se dum pequeno prédio de três andares, onde se albergam crianças e adultos que a sociedade tece mas não entretece, mau grado os discursos dos seus pequenos ou maiores representantes públicos, a começar pelos imbecis que gerem este centro onde trabalhei durante quase dois anos.
Passa-se pois que fui despedida, e para mais com um bónus de dois processos crime no topo ou em anexo, por coisas que fiz e terei, por razões vitais, de assumir e defender perante seja quem fôr. E mais do que isso, sofrendo e revoltando-me por tais actos e atitudes serem tão rigorosamente anulados em instituições como as do Bom Amor, sem porventura sequer se vislumbrarem outras respostas adequadas aos problemas que me impeliram a tais acções.
Para ficarmos com uma ideia geral da realidade onde se banha aquele centro do Bom Amor, e no fundo a vida de todos nós, em maior ou menor distância e ilusão, temos de ter em mente que a maioria das pessoas cujo trajecto lá se abate, são crianças abusadas de todos os modos e medos, que misturamos com pessoas brutalmente perturbadas ou doentes, de todas as idades, e que não têm onde nem como cair vivos ou mortos.
Aquele que com mais ferro me marcou, e que interessa para os casos a falar aqui, foi o Zeca. O Zeca tem onze anos e um corpinho musculado como se fizesse musculação desde os três. Mas a loucura é outra. Depressa me apercebi que a tensão nervosa que o habitava daria para duas bombas atómicas, e que ainda sobraria suficiente pressão para dar cabo de eventuais sobreviventes. É a tensão nervosa e a agitação constante que lhe desenvolvem os músculos, e o atarracam. É daqueles que a directora e a pita que se diz psicóloga consideram de « muito problemático », o que significa que « com este será difícil fazer algo ». Logo após eu chegar, descolou a retina com um estertor enquanto dormia. Uma semana depois caía pelo caracol da escada partindo uma perna. A estrada é pequena demais para a sua fuga.
É no entanto um miúdo muito carente e carinhoso, embora o seu modo de expressar e procurar amor esteja de acordo com a vida que o violentou. Uma vez, estando eu a subir a escada e ele mesmo atrás de mim, enfiou-me a mão saia acima, e agarrou-me o sexo de mão cheia, quero dizer não como quem toca algo de estranho e desconhecido mas com a mão segura e forte de quem sabe muito bem do que se trata. Virei-me para trás um pouco surpresa, e ele rindo disse : É quentinho, não é ?... Afaguei-lhe o rosto, não sabia mesmo o que dizer-lhe. O equívoco nele era tão tremendo que qualquer palavra o poderia confundir ainda mais. E eu ainda não o conhecia o suficiente, e saiu-me tão só : Não deves fazer isso sem ter a certeza que a outra pessoa quer que tu lhe mexas aí… Levei-o para o quarto, era hora de deitar, e contei-lhe uma estória para ele dormir, uma estória com suficiente imaginação e cores e ternura, algo que eu queria que lhe alargasse a estrada ou a dirigisse para alguma serenidade, sei lá eu o que se pode fazer pelo outro ou pelo mundo ou até por nós próprios. Andamos é aqui todos a apanhar bonés, mas que raio, tem que se fazer qualquer coisa, nem que seja tentar desenhar uma flor no rosto da nossa perdição.
1 Comments:
As nossas crianças são o futuro. ditarão em muito o futuro deste mundo.
Temos que estar bem atentos a elas, atentos aos "sinais" para não deixar que elas se "percam".
X.
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