Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Sobre o debate em si

Texto retirado daqui, e encontrado aqui (e na sequência deste post):

[Torna-se] evidente o fenómeno social mais curioso do debate sobre o aborto. Como em muitos outros debates públicos, o objectivo não é realmente persuadir as pessoas de que a posição mais defensável é a nossa. Se o objectivo fosse esse, os argumentos das feministas e dos cristãos, para dar apenas dois exemplos, seriam sinal de carências cognitivas gritantes, pois os argumentos usados por estas pessoas são geralmente concebidos para serem inócuos para quem não aceita os seus pontos de partida — a sua atitude religiosa perante a vida, num caso, ou a sua atitude libertária com respeito à condição feminina, no outro. O que se passa é que as pessoas usam o debate sobre o aborto para "contar armas". O objectivo da feminista não é persuadir o religioso, por exemplo, a mudar de ideias; o objectivo é exaltar quem já aceita os pressupostos feministas, de modo a arregimentar partidários contra o religioso, exibindo-os publicamente para mostrar a força do movimento. O mesmo se pode dizer do religioso que argumenta contra a permissibilidade do aborto com base no carácter sagrado da vida: tudo o que ele quer realmente é apresentar números impressionantes de apoiantes que partilham a sua fé, contra as bestas dos ateus e das feministas. Em ambos os casos, trata-se de usar um tema de interesse público para acordar do sono complacente aquelas pessoas que no fundo já concordam connosco mas não se manifestam publicamente. É por isso que se usam argumentos que são obviamente inócuos para quem discorda de nós — o objectivo não é persuadir essas pessoas, mas sim esmagá-las com o número de apoiantes da nossa causa que conseguimos acordar e tornar activos. Curiosamente, esta estratégia de usar o problema do aborto para "contar armas" falhou completamente aquando do último referendo. Pois a taxa de abstenção foi tal que se tornou evidente que a maior parte da população não achou necessário juntar-se a qualquer das facções que tão diligentemente procuravam acordar os seus correligionários.

Usar um debate público para "contar armas" sugere que quem o faz não acredita pura e simplesmente na argumentação. Isto é, não acredita que seja possível chegar a resultados relativamente consensuais usando argumentos com premissas universais, ou tão universais quanto possível, que todas as pessoas possam aceitar. É por isso que tal pessoa não tenta sequer persuadir directamente quem não concorda com ela; ao invés, procura mostrar-lhe indirectamente que, se é feminista, ou católico, ou de direita, ou de esquerda, ou jovem, ou mulher, etc., então tem de votar num certo sentido e não noutro. Mas será verdade que não é possível encontrar argumentos que usem premissas universais, ou tão universais quanto possível?

[...] defender que o aborto não é permissível ou que é permissível recorrendo à "contagem de armas" e à força bruta do número de apoiantes é uma atitude antidemocrática e ditatorial. O voto dos cidadãos não deve reflectir as suas origens, preconceitos, modos de vida, opções religiosas ou ideológicas, mas antes a sua reflexão imparcial, séria e informada sobre o que consideram obrigatório ou permissível, para toda a gente, à luz da razão pública. Qualquer decisão pública sobre a permissibilidade ou não do aborto terá de responder a razões universais, que qualquer cidadão de boa-fé possa aceitar, independentemente das suas opções religiosas, ideológicas ou outras. Procurar impor a toda a população uma medida que só é defensável usando argumentos feministas ou religiosos é um acto antidemocrático, inaceitável numa sociedade livre.

Infelizmente, esta é atitude que impera na nossa jovem democracia — e não apenas em relação ao aborto. Talvez este seja o resultado de um país que só em breves momentos conheceu regimes democráticos e livres: não se acredita na argumentação racional. Enquanto persistir esta descrença, a nossa democracia será frágil e meramente formal. O debate público sobre o aborto — ou melhor, a algazarra irracional sobre o aborto — é preocupante precisamente por isso.