1. A separação entre “género argumentativo” e “posição vital” é farisaica – ou tradicionalmente assim denominada, com injustiça histórica para os fariseus. Isto porque o farisaísmo não ocorre nos conteúdos, mas na forma, ou se preferirmos, na relação com os conteúdos, precisamente na sua desvitalização e absolutização abstracta. O que está esplendorosa e definitivamente identificado na afirmação do Moço: É o sábado que serve o homem, e não este o sábado. Para entender-se bem isto (ou seja, cristologicamente:P tem de ter-se em conta que na boca do deus vivo, o humano nunca é genérico e abstracto, mas sempre singular e concreto. Nunca é um ele mas sempre um tu, e quando é um ele, é para revelar-lhe a sua irrealidade pelo silêncio ou pela diatribe, repondo o concreto pessoal no centro do coração e das decisões e do pensamento e do sentimento e etc por aí fora.
2. Não se trata de negar a conceptualidade e a generalidade, de não ter “género argumentativo” ou espírito analítico, mas de nunca subsumir o concreto à ideia, o que ocorre na separação objectivante em que a dinâmica lógica e dialéctica prossegue apoiada apenas em si própria. A maioria dos silogismos são demoníacos (lição dos muçulmanos;) – produzem uma cisão entre as representações e o fluxo de vida, separando-nos do divino e de nós próprios, depondo-nos na inautenticidade. Quando se idolatra a cabeça, rolam cabeças concretas no cadafalso, a começar pela nossa que se aliena em representações desligadas de si. É sempre assim. É sempre em nome duma ideia da vida que se pisa a verdadeira vida. Dreams of reason produce monsters – não poderia dizê-lo melhor. A razão é um instrumento, não uma finalidade em si.
3. Nota histórica que não serve de muito aqui mas que no entanto é devida: houve historicamente fariseus não farisaicos, isto é, que reconduziam à vida concreta e ao amor desta os seus ditames, fracassando ou não, mas isso é outra estória (e História;)
4. Eu não invoquei o Estado liberal, visto até que ele está aí e nele nos socializamos. Eu tenho até imensos problemas com o sistema liberal aliado à democracia representativa, muitos dos quais são os que me levam a não votar no referendo, fosse ele sobre o aborto ou sobre a rede de electricidade do país. O que eu quis dizer é que o referendo e o sistema legislativo em que este é feito são o que são, e que não faz muito sentido invocar fora dele uma qualquer “instância que diz respeito a todos” – qual será, fora dum sistema ideológico ou de valores?... O comer e respirar? :P O Manuel invocas uma instância exterior, a que chama civilização, e que se bem percebo, teria como um dos seus fundamentos constitutivos o respeito e defesa da personalidade humana (isto é, o seu valor próprio e individual) acima de qualquer detenção de poder e posse vital de outrem (neste caso a mãe, ou os pais, ou o Estado, ou os médicos...). Pretende o Manuel que isso é uma “evolução civilizacional” – dos direitos da personalidade filosófica e jurídica de escravos, mulheres, deficientes, homossexuais, etc, desembocaríamos natural e evolutivamente nos direitos pessoais da concepção biológica “ab initio”. Passa-se que isto não é líquido nem natural ou historicamente legítimo. É uma posição ideológica.
5. Trata-se portanto dum sistema de valores e horizonte de sociedade-a-vir, e que só pode advir de narrativas e horizontes religiosos ou outros. Pois nunca a lógica e a analítica e método hipotético-dedutivo da ciência, seja a biologia ou outra qualquer, te dará, Manuel, essa “inviolabilidade da vida desde a concepção”, assim como a sua personalidade jurídica. Acrescente-se que afirmar que um óvulo fecundado é imediatamente uma pessoa ou ser humano completo e autónomo, não releva de todo da biologia. O truque aqui é fazer passar uma posição ideológica por instância neutra, natural, universal. E mesmo que eu tenda ideológica e abstractamente a aderir a tais valores em jogo, de modo algum o faço com essa técnica de dissimulação e abstractivação com pretensão universal. Pelo contrário, considero-a de raiz e formalmente, um perigoso farisaísmo, mau ou bom grado os seus conteúdos.
6. Esta afirmação da “inviolabilidade da vida desde a concepção” tem aliás consequências noutros fenómenos que não o aborto, e ou são assumidas desde logo ou então merda. Refiro-me por exemplo às questões de certas fecundações artificiais, acerca das quais não tenho conhecimento suficiente para esclarecimentos, e de tantas outras que não sei. Mas penso que para defender-se a universalidade dum princípio, se deve fazer um levantamento de todas as consequências da sua aplicação, e não apenas aquelas que dão jeito (neste caso o aborto, que é evidentemente e para a maioria das pessoas, incluindo as que vão votar “sim” – um mal.).
7. Reesclareço que os personagens e situações ficcionalmente descritas pela minha lírica pena não pretendem representar ninguém, nem sequer imitar a realidade (seja lá o que isso for;) Tratam-se de singularidades poéticas, que trazem dos fundos do que me habita imagens e símbolos que possam ecoar noutras singularidades vivas (a começar pela minha própria consciência). Não se trata de dar exemplos ou ilustrações de nenhuma posição ideológica, mas de aceder a certas fontes de vida e palavra. Estão muito mais perto do poeta e do músico, do que do político e do moralista, precisamente pelos motivos atrás invocados do que entendo que é a fonte de salvação. Primeiro a vida, e depois a sua orientação; ou então teremos a vida orientada por algo que não a conhece e pretende substituir-se a ela. O costume, venha como vier e venha donde vier. O que nos vale são os profetas, que os Herodes hão-de sempre e continuamente assassinar.
8. Este esclarecimento é evidentemente cristão, no seu sentido profundo, isto é – a apropriação vital que me conduz e pretendo constituir pessoalmente. Outras apropriações há, (sobre)naturalmente. De algum modo, estamos sempre presos à nossa situação e decisões de sentido e orientação.
9. Este diálogo e debate está tão viciado à partida que me cansa ainda antes de eu o começar. E não o está pela dialogalidade e adversidade ou concordância de posições, mas intrinssecamente. Aqui estou em absoluto acordo com a Vanda (sim, o autor não é as personagens): estamos (ou estou) ainda a milhas duma libertação de todos os escolhos conscientes e inconscientes, individuais e colectivos, políticos e biológicos, que em mim se entrelaçam para poder botar discurso seguro. Mas a partir daqui devo calar-me. Teria de pôr em análise e aferição, o que faria eu se porventura fosse votar, ou se preferirmos, o que gostaria que fosse a legislação do aborto. Tal não fiz, por motivos já referidos de não ir votar. E isso implicaria um esforço de levantamento de questões que poderiam extravasar o sentido da minha participação aqui, para além da trabalheira que não me está a apetecer ter ;) Discutir o voto no referendo é algo que não está incluído no meu contrato para este blog., por muito estranho e ilegítimo que possa parecer. Pelo menos, até ver. Aviso no entanto que se o fizer, será directamente, e não indirectamente através de subtextos ou surdamente tendenciosos lirismos. Interrompe-se portanto esta interrupção, e volta-se à tarefa iniciada.
10. Bolas, no que eu me meti! Que Deus me conduza, caragos mil, qual neutralidade qual caraças!
Abreijos a tutti quanti.