Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Argumentação falaciosa

Na rotunda que contorno todos os dias a caminho do emprego deparo com primeiro outdoor da campanha para o referendo. Dois homens de blusão e óculos escuros conduzem pelo braço uma mulher que tapa a cabeça e os ombros com um casaco. Um enorme Sim e a frase “para acabar com a humilhação” concluem a mensagem. O Bloco de Esquerda assegura deste modo que a eventual vitória do Sim terminará, em definitivo, com ida a tribunal e a vexação das mulheres que optam pelo aborto.
Claro que a mensagem não é verdadeira. A proposta de alteração em referendo continua a prever a criminalização dos que provoquem o aborto após as dez semanas de gestação. Por isso continuarão a ser levadas mulheres a tribunal e homens de óculos escuros tornarão a usar casacos para lhes garantir o anonimato. Os julgamentos serão menos, provavelmente. Mas, com a nova proposta de lei, a cena em causa tem repetição regular garantida.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Fundamento cristão






E boas festas, pausas, trabalhos, celebrações, relações, dormires, acordares, conversas, e mais todo o resto que bom pode ser – para todos.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Cultura da idiotice

Se ouço mais um argumento de auto-convencimento de superioridade moral, de combate da luz contra as trevas ou do progresso contra o atraso, rebento. Irra, façam dois grandes clubes de futebol e disputem lá um campeonato a dois*...

E pronto, como um convidado não se deve portar mal (por exemplo, fazendo posts de pura refilice), deixo uma pergunta: afinal qual seria a situação ideal? Se houvesse dinheiro e vontade, e tivesses tu de legislar do zero, como farias? Dedicavas mundos e fundos à prevenção do aborto e à ajuda às mulheres grávidas? Manterias a lei actual? Se pudesses escolher para além do sim e do não, dar uma resposta global, que proporias tu? (e aqui vale tudo, desde a liberalização total até à criminalização do aborto até em caso de risco de vida da mulher)

* Andei a ler blogs... Hei-de ver se não repito muito a gracinha, que deixa-me mal disposto...

segunda-feira, dezembro 18, 2006

A proposta da fuga para a frente

(...) Desde o último referendo, pouco ou nada se fez em matéria de educação sexual. Não no sentido formal - como alguns fizeram crer que seria possível pôr em prática, nomeadamente nas escolas (quer na propaganda do 'sim', quer na do 'não').
Depois de um boom de informação sobre os comportamentos de risco em matéria sexual, e não só, motivada pela forte propagação do SIDA, nos anos 80, procurou-se capitalizar, e bem, esse fluxo de informação na década seguinte, de forma a moldar a sexualidade diminuindo também o risco de uma gravidez indesejada.
O que é certo é que os jovens desta década continuam a descurar a prevenção, num claro retrocesso comportamental. A falha está aí e essa não é substituída por uma solução de recurso como é o aborto. Esta crítica não é moralista nem se dirige ao comportamento dos indivíduos na sua intimidade.
A SOCIEDADE evolui a uma vertiginosa velocidade, a virtualidade ganha terreno e a materialização dos valores assume um risco tremendo para quem procura um eixo em si próprio.
Nesta matéria, como em tantas outras, vive-se a ideia de que com um acto instrumental se resolve um problema momentâneo de forma definitiva.
Quem abortou diz-me que não, que não é assim, que as 'marcas da memória' se mantêm por toda a vida. Pelo que não pode o Estado - apenas para pôr fim «a uma sucessão de julgamentos de mulheres pelo crime de aborto que confrontaram a nossa sociedade com uma lei obsoleta e injusta, que coexiste com o drama do aborto clandestino» (Programa do Governo) - demitir-se do seu papel anterior e, ainda por cima, anunciar juízos de valor sobre a actualidade da lei em vigor e a sua justeza.
DEMITE-SE também o Estado nas políticas de apoio à família. É inadmissível e desonesto que, sempre que os arautos do 'sim' falam da 'necessidade' de mudar a lei, não falem das medidas de apoio à família, à sua formação, ao seu desenvolvimento.
Lanço, por isso, este desafio: não será mais injusto pedir a uma mulher que toma conhecimento de uma gravidez imprevista oferecer-lhe uma (ilusória) 'solução chave-na-mão' sem lhe dar - o Estado - a possibilidade de optar pela segurança e conforto da decisão pela vida, pela novidade, pela criação de um projecto de continuidade da sua existência, apoiada na segurança, no impulso positivo?
OUVI hoje mesmo alguém dizer - com algum sarcasmo, é certo - que estamos atrasados na criação do 'welfare state' e já querem acabar com ele. Pois bem, não seria muito melhor propor esta equação à mãe que lida com a dúvida do momento?
É que não se trata de ver nesta questão o fundamentalismo de que todas as gravidezes são desejadas. Quantas não foram e produziram a maior felicidade às suas famílias e à sociedade. Trata-se da honestidade da abordagem do problema, como tal, como um problema, cheio de dúvidas e incertezas a que as respostas devem ser construtivas e não demissionárias.
Essas respostas, como se prova, não existem no 'sim'. Nem agora, na campanha. Temo que não se debata a dúvida que apenas se fechem os punhos em torno desse radicalismo da liberdade da mulher, que seguramente a merece, mas como qualquer ser humano. Parece é que, assim, há um que não a tem. E esse direito é inalienável.
Luís Varela Marreiros
Sol, 16.12.2006

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Factos


No meio da algazarra argumentativa e das discussões mais ou menos acesas, convém não perder de vista alguns factos, conhecidos e de fácil comprovação.

1. Não há, nas prisões portuguesas, nenhuma mulher presa por prática de aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez.

2. Nos últimos dados oficiais, não se regista nenhuma morte derivada da prática de aborto.

3. Nos países onde se liberalizou o aborto, não se registou uma diminuição do número de abortos. Pelo contrário.
Não é apenas sobre isto que se discute, mas é bom não esquecer isto quando se discute.

Vanessa 2, moral e legislação

É imoral forçar uma miúda, uma alcoólica, uma mãe desgastada e pobre já com cinco filhos, uma mulher em tresvario seja por que for, e todas outras situações de vida mais ou menos graves, a seguir até ao fim com uma gravidez.

É imoral interromper o processo biológico de gestação.

Afinal, como é que a lei, que convém ter um termo que possibilite práticas e resultados (há dúvidas acerca disto relativamente ao nosso glorioso Portugal, mas siga) pode resolver este imbróglio?

Vanda 3, riso

Um útero fecundado torna-se imediatamente inviolável.

Claro.

Foi tocado pelo santo dos santos. Não a vida misteriosa e profunda e exuberante, mas tão só – o simples pénis.

Nota do Vítor: Relativamente à inviolabilidade e à pergunta do referendo, o CA tem um comentário pertinente no post “870” do Manuel logo abaixo.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

870


"A 'questão do aborto' em Portugal é uma história já adulta. Há mais de 20 anos, quando alguns dos actuais eleitores não eram sequer nascidos, a discussão centrava-se à volta do início da vida humana. Por um lado, os pró-vida argumentavam que esta começava no princípio, na concepção. Por outro lado, os pró-escolha defendiam que ninguém sabia quando começava a vida humana, e um "conjunto de células" nas primeiras semanas de gravidez não o era certamente. Os dados científicos eram escassos e havia um grande desconhecimento sobre o desenvolvimento do feto.
Há oito anos o primeiro referendo sobre a IVG (interrupção voluntária da gravidez em PPC, português politicamente correcto) mostrou uma clivagem entre a opinião pública e a publicada: teve uma abstenção superior a 70 por cento e o "não" ganhou.
Nos últimos oito anos assistimos a várias tentativas de colocar a questão do aborto na agenda política. O "flagelo do aborto clandestino" foi considerado argumento principal, apesar de os escassos e incompletos dados oficiais mostrarem um número reduzido de internamentos por complicações de aborto fora do quadro legal (1426 internamentos em 2004, 89 por cento por aborto incompleto ou retido, apenas 56 infecções e ausência de mortalidade; dados da Direcção-Geral de Saúde). Foi-nos repetidamente perguntado se queríamos "mandar as mulheres para a prisão". Contudo, as poucas mulheres julgadas até hoje tinham todas abortado com mais de dez semanas de gravidez e daí não resultaram penas de prisão. A eventual legalização do aborto até às dez semanas "por opção da mulher" criminaliza-o a partir das dez semanas e um dia, pelo que estas questões da humilhação, julgamento e eventual condenação se mantêm a partir daí.
A mãe deve ser compreendida e ajudada, mas não podemos desviar a nossa atenção da outra vida em questão, a do feto, que, por ser frágil e indefesa, depende da nossa protecção. Porque actualmente, passados mais de 20 anos, já não pode ser dito que o feto não é vida, pois a ciência mostrou-o de um modo claro e comovente. Pode causar surpresa a alguns, mas é hoje consensual entre a comunidade científica que, às dez semanas (para aplicar o limite arbitrariamente proposto pelo actual referendo), o tal "conjunto de células" se encontra organizado de um modo que é impossível não ser reconhecido como um ser humano.
Avanços recentes na cardiologia fetal mostram que o desenvolvimento do coração ocorre entre as três e as seis semanas de gestação, e que por volta do 20.º dia este já bate. Entre a 8.ª e a 9.ª semana, o coração está formado com as estruturas cardíacas, ocupando já as posições e realizando as suas funções definitivas. Às dez semanas, o coração do feto assemelha-se muito ao coração adulto, quer externa, quer internamente. As mais delicadas estruturas cardíacas, como os milimétricos folhetos da válvula aórtica, estão formadas e vão continuar a sua maturação e diferenciação. Às dez semanas, a função circulatória está estabelecida e só vai alterar-se após o bebé nascer, com a adaptação à respiração. O coração bate com regularidade e variabilidade, e a complexidade das funções sistólica e diastólica é comparável à dos adultos.
Sem estigmatizar as grávidas, antes acolhendo-as e aos seus bebés, é nosso dever como profissionais de saúde tornar as "barrigas transparentes", de modo a ajudar os portugueses a compreender que lá dentro está uma pessoa, que, se tiver dez semanas de gestação, tem um coração que bateu 870 vezes durante a leitura deste artigo.

José Diogo Ferreira Martins
Cardiologista pediátrico, in Publico, 12.12.2006

A base religiosa da minha posição

Nota-se um certo pudor por parte de alguns cristãos em assumir a influência da fé na opção de voto no referendo.
Talvez isso aconteça pela vigência de um conceito deturpado de laicismo, importado da Revolução Francesa, que pretende afastar a religião do espaço público. Como se a convicção religiosa valesse menos que a opção ideológica ou filosófica. Ou como se a perspectiva agnóstica, ou ateísta, fosse a única com capacidade para lidar sensatamente com a vida do dia-a-dia.
Mas, para além do laicismo, também atitudes de ordem táctica podem explicar a timidez dos religiosos.
Muitos movimentos pelo Sim tentam passar a ideia de que este é um assunto eminentemente religioso, uma espécie de braço-de-ferro entre a Igreja Católica Romana e a “sociedade civil”. Um pouco na linha da questão do preservativo ou, recuando uns anos, do divórcio. Uma reacção anti-progresso social que irá acabar por se tornar obsoleta, dizem. Tentando fugir a esta colagem, os religiosos, mesmo não católicos, como eu, acabam por pensar duas vezes antes de argumentarem com base na sua fé. E talvez até seja prudente agir assim. Só que há um limite para tudo. E o meu limite, nesta discussão, chama-se vida humana.
Acredito que cada vida humana é preciosa para Deus e que ela começa no momento da concepção. Esta convicção, religiosa, projecta a minha posição sobre o aborto. O embrião, o feto, o bebé, tornam-se assim meus “próximos”, os tais que Jesus Cristo quer que eu ame como a mim mesmo. E eu não posso, a partir daqui, ficar indiferente à sua destruição.
Esta perspectiva, como se percebe, é a base fundamental da minha posição em relação à despenalização do aborto. Claro que me interessam outras áreas do debate e não reduzo, longe disso, a discussão à questão religiosa. Mas também não escondo que há um limite que não ultrapasso: o da vida humana. Sem sobranceria, mas também sem complexos, é este o meu ponto de partida.

Nota 3, sejamos claros

Falemos do processo de gestação antes de se constituírem cérebro, nervos e coração.

O que está lá? O início dum processo de gestação dum ser humano. Um projecto. Seja. O que lhe doa humanidade é a apreensão desse futuro latente, esse anseio projectivo. Porque directamente e por si, nada há lá de humano, tal como comer sementes germinadas não é degustar frutos e legumes. O que lhe doa humanidade é a sua apreensão por fora numa mente humana, angélica, divina ou o que for.

Se mantivermos apenas o humano, suspendendo a presença de Deus e dos anjos e de eventuais outros – basta a negação dessa projecção e anseio humanos, para o processo se reduzir ao que é no imediato: um amontoado indiferenciado e indiferente de células.

É conceptualmente que um óvulo acabado de fecundar é um ser humano – consciente, reflexivo e dialogal.

Suspenso o divino e os anjos, quem tem o domínio dessa projecção conceptual? Se os pais ou a mãe a retiram, ou decidem agir em seu contrário, deve o Estado mantê-la? Em nome de quê?

Sejamos claros. Para mim, será sempre uma pessoa. Em nome do Deus da vida. Mas sem essa invocação – ou outra – sou forçado a admitir que a inviolabilidade do projecto se esboroa como um conceito cujo fundamento se perdeu na noite da alma.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Nota 2, ou esclarecimento para o Manuel e para o David, com eventual interesse geral para o tema em discussão

1. A separação entre “género argumentativo” e “posição vital” é farisaica – ou tradicionalmente assim denominada, com injustiça histórica para os fariseus. Isto porque o farisaísmo não ocorre nos conteúdos, mas na forma, ou se preferirmos, na relação com os conteúdos, precisamente na sua desvitalização e absolutização abstracta. O que está esplendorosa e definitivamente identificado na afirmação do Moço: É o sábado que serve o homem, e não este o sábado. Para entender-se bem isto (ou seja, cristologicamente:P tem de ter-se em conta que na boca do deus vivo, o humano nunca é genérico e abstracto, mas sempre singular e concreto. Nunca é um ele mas sempre um tu, e quando é um ele, é para revelar-lhe a sua irrealidade pelo silêncio ou pela diatribe, repondo o concreto pessoal no centro do coração e das decisões e do pensamento e do sentimento e etc por aí fora.

2. Não se trata de negar a conceptualidade e a generalidade, de não ter “género argumentativo” ou espírito analítico, mas de nunca subsumir o concreto à ideia, o que ocorre na separação objectivante em que a dinâmica lógica e dialéctica prossegue apoiada apenas em si própria. A maioria dos silogismos são demoníacos (lição dos muçulmanos;) – produzem uma cisão entre as representações e o fluxo de vida, separando-nos do divino e de nós próprios, depondo-nos na inautenticidade. Quando se idolatra a cabeça, rolam cabeças concretas no cadafalso, a começar pela nossa que se aliena em representações desligadas de si. É sempre assim. É sempre em nome duma ideia da vida que se pisa a verdadeira vida. Dreams of reason produce monsters – não poderia dizê-lo melhor. A razão é um instrumento, não uma finalidade em si.


3. Nota histórica que não serve de muito aqui mas que no entanto é devida: houve historicamente fariseus não farisaicos, isto é, que reconduziam à vida concreta e ao amor desta os seus ditames, fracassando ou não, mas isso é outra estória (e História;)

4. Eu não invoquei o Estado liberal, visto até que ele está aí e nele nos socializamos. Eu tenho até imensos problemas com o sistema liberal aliado à democracia representativa, muitos dos quais são os que me levam a não votar no referendo, fosse ele sobre o aborto ou sobre a rede de electricidade do país. O que eu quis dizer é que o referendo e o sistema legislativo em que este é feito são o que são, e que não faz muito sentido invocar fora dele uma qualquer “instância que diz respeito a todos” – qual será, fora dum sistema ideológico ou de valores?... O comer e respirar? :P O Manuel invocas uma instância exterior, a que chama civilização, e que se bem percebo, teria como um dos seus fundamentos constitutivos o respeito e defesa da personalidade humana (isto é, o seu valor próprio e individual) acima de qualquer detenção de poder e posse vital de outrem (neste caso a mãe, ou os pais, ou o Estado, ou os médicos...). Pretende o Manuel que isso é uma “evolução civilizacional” – dos direitos da personalidade filosófica e jurídica de escravos, mulheres, deficientes, homossexuais, etc, desembocaríamos natural e evolutivamente nos direitos pessoais da concepção biológica “ab initio”. Passa-se que isto não é líquido nem natural ou historicamente legítimo. É uma posição ideológica.

5. Trata-se portanto dum sistema de valores e horizonte de sociedade-a-vir, e que só pode advir de narrativas e horizontes religiosos ou outros. Pois nunca a lógica e a analítica e método hipotético-dedutivo da ciência, seja a biologia ou outra qualquer, te dará, Manuel, essa “inviolabilidade da vida desde a concepção”, assim como a sua personalidade jurídica. Acrescente-se que afirmar que um óvulo fecundado é imediatamente uma pessoa ou ser humano completo e autónomo, não releva de todo da biologia. O truque aqui é fazer passar uma posição ideológica por instância neutra, natural, universal. E mesmo que eu tenda ideológica e abstractamente a aderir a tais valores em jogo, de modo algum o faço com essa técnica de dissimulação e abstractivação com pretensão universal. Pelo contrário, considero-a de raiz e formalmente, um perigoso farisaísmo, mau ou bom grado os seus conteúdos.

6. Esta afirmação da “inviolabilidade da vida desde a concepção” tem aliás consequências noutros fenómenos que não o aborto, e ou são assumidas desde logo ou então merda. Refiro-me por exemplo às questões de certas fecundações artificiais, acerca das quais não tenho conhecimento suficiente para esclarecimentos, e de tantas outras que não sei. Mas penso que para defender-se a universalidade dum princípio, se deve fazer um levantamento de todas as consequências da sua aplicação, e não apenas aquelas que dão jeito (neste caso o aborto, que é evidentemente e para a maioria das pessoas, incluindo as que vão votar “sim” – um mal.).


7. Reesclareço que os personagens e situações ficcionalmente descritas pela minha lírica pena não pretendem representar ninguém, nem sequer imitar a realidade (seja lá o que isso for;) Tratam-se de singularidades poéticas, que trazem dos fundos do que me habita imagens e símbolos que possam ecoar noutras singularidades vivas (a começar pela minha própria consciência). Não se trata de dar exemplos ou ilustrações de nenhuma posição ideológica, mas de aceder a certas fontes de vida e palavra. Estão muito mais perto do poeta e do músico, do que do político e do moralista, precisamente pelos motivos atrás invocados do que entendo que é a fonte de salvação. Primeiro a vida, e depois a sua orientação; ou então teremos a vida orientada por algo que não a conhece e pretende substituir-se a ela. O costume, venha como vier e venha donde vier. O que nos vale são os profetas, que os Herodes hão-de sempre e continuamente assassinar.

8. Este esclarecimento é evidentemente cristão, no seu sentido profundo, isto é – a apropriação vital que me conduz e pretendo constituir pessoalmente. Outras apropriações há, (sobre)naturalmente. De algum modo, estamos sempre presos à nossa situação e decisões de sentido e orientação.

9. Este diálogo e debate está tão viciado à partida que me cansa ainda antes de eu o começar. E não o está pela dialogalidade e adversidade ou concordância de posições, mas intrinssecamente. Aqui estou em absoluto acordo com a Vanda (sim, o autor não é as personagens): estamos (ou estou) ainda a milhas duma libertação de todos os escolhos conscientes e inconscientes, individuais e colectivos, políticos e biológicos, que em mim se entrelaçam para poder botar discurso seguro. Mas a partir daqui devo calar-me. Teria de pôr em análise e aferição, o que faria eu se porventura fosse votar, ou se preferirmos, o que gostaria que fosse a legislação do aborto. Tal não fiz, por motivos já referidos de não ir votar. E isso implicaria um esforço de levantamento de questões que poderiam extravasar o sentido da minha participação aqui, para além da trabalheira que não me está a apetecer ter ;) Discutir o voto no referendo é algo que não está incluído no meu contrato para este blog., por muito estranho e ilegítimo que possa parecer. Pelo menos, até ver. Aviso no entanto que se o fizer, será directamente, e não indirectamente através de subtextos ou surdamente tendenciosos lirismos. Interrompe-se portanto esta interrupção, e volta-se à tarefa iniciada.

10. Bolas, no que eu me meti! Que Deus me conduza, caragos mil, qual neutralidade qual caraças!



Abreijos a tutti quanti.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Valério, acto dois

Lembro-me : estava deitado na cama, de óculos escuros, um feliz vazio crescendo dentro de mim como uma pacificação, quando ela entrou e de imediato tirei os óculos, algo no seu rosto e presença me instigou a querer olhá-la claramente, e sobretudo que ela a mim nos olhos pudesse fitar-me ou fitar-se, pois que um peso trazia ela visivelmente, algo que arrastava e a fazia arrastar-se quarto fora até à beira da cama onde se sentou, e sem olhar para mim mas para a parede ou para a janela, disse :

- Estou grávida, gatinho, e suspirou, e baixou o seu olhar para o chão, Grávida… e o silêncio que se seguiu era como um vazio infeliz substituindo-se à minha pequena beatitude. Ela olhou para mim, e enfrentou aquele vazio : Vamos ter que fazer qualquer coisa. Nós não podemos cuidar dum filho.

Mantive-me calado. Eu era um tonto na altura, muito mais do que agora o sou. Ela é que sabia. Afinal, ela era a mulher. E também a adulta. Talvez até não fosse meu o filho, mas também, que raio quer isso dizer de um filho ser nosso ? Eu é que estava com ela, como mais ninguém estava, na intimidade do sono e do coração, os outros apenas a fodiam, não dormiam com ela. Os outros eram o nosso ganha-pão, companheiros ou amigos na melhor e quão rara das hipóteses. Eu era o espelho do seu rosto, o resto do seu corpo, ou pelo menos queria sê-lo. A sua dor arrepanhava-se-me no estômago como uma úlcera.

Acendi dois cigarros e passei-lhe um aproximando o meu corpo do dela, oh Deus, como eu a amava, como o meu corpo tremia e suava à mínima aproximação, ao mínimo odor e tacto… mas como já ocorrera noutros menos graves momentos, uma voz demoníaca surdamente dizia em mim : Eu sou o homem ! Eu sou o homem ! Eu sou o homem ! uma voz que em mim nascia do medo masculino, este orgulho que vem do fundo dos tempos e do útero, e também oh estranheza, do meu imediato paterno, uma voz que calei prontamente : - Que queres fazer ? agarrando-lhe nas mãos e beijando-as, oh a doce confusão da vida, estes momentos mesclados de dor e felicidade, o fel e o mel no mesmo trago, todos sabemos do que falo.

- Vamos ter de abortar, disse ela, e que sabia eu disso ou do que fosse, eu que nem atinara com aquela bodega de borracha. E aquela frase caiu como um rochedo numa melodia de algodão, tinha qualquer coisa de terrível. Meu ou não, algo crescia dentro dela, algo que poderia ter o rosto e a felicidade do amor, do nosso amor. E dolorosamente ela o disse. Pois que outra coisa poderíamos fazer ? Ia eu arranjar dinheiro enquanto ela se iluminava por dentro ? E faríamos o quê mais ? O meu pai já devia ter posto a bófia atrás de mim, nada de grave, enfim, apenas um puto fugido, mas depois o quê ? Íamos os dois viver com ele para ele suicidá-la a ela também ? Ou eu ter que acabar por atirá-lo a ele para as urtigas da morte ? E depois ela não podia ir para a luz do dia, o seu caso era bem pior que o meu, uma sentença de morte estava suspensa sobre os seus dias, a executar-se mal ela se desse a ver. E eles não perdoavam, era o que ela me dizia, eles não perdoavam. Merda de mundo, este que construímos.

- Hoje não vou trabalhar, disse ela apagando o cigarro e aninhando-se em mim, vamos ficar aqui os dois na cama a comer bolachas e a mimar-nos, e todo eu pobre puto tonto a acolhi, porque estava tudo bem, estava tudo certo, eu e ela ali estávamos, e até amanhã pelo menos, isso, ninguém no-lo tiraria.






Nota do Vítor: Por motivos e motores de vida e pensamento, eu não votarei no dito referendo nem não, nem sim, nem talvez. O que faço aqui indica-se nestoutra nota.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

O Não de Jacinto

Já se disseram aqui coisas muito parecidas, mas parece-me bom sublinhar o contributo de Jacinto Lucas Pires.
Sugiro leitura integral.

"Já se sabe que a questão do aborto é "complexa", "transversal" e que as habituais cartilhas políticas não bastam para indicar respostas. Ainda assim, devo dizer que estranho muito não haver, à esquerda, mais defensores do "não" no referendo. De facto, e tirando talvez alguns dos chamados católicos progressistas, não se vê ninguém. Estranho-o porque, se há ainda algo capaz de distinguir a esquerda da direita, isso devia ser a vontade de uma real transformação da sociedade e do mundo - contra os realismos-pessimismos que, no fundamental, se satisfazem com o estado de coisas vigente. Ora, tal implica, antes de mais, não capitular perante a "tragédia do facto consumado".Por outro lado, é óbvio que esse "sonho concreto" da esquerda tem de assentar em princípios básicos de humanidade e justiça - e estes não podem deixar de começar pela protecção da vida humana."
(A Esquerda e o Aborto, Jacinto Lucas Pires no DN de Hoje)