Razöes do Näo

No próximo referendo sobre o aborto votaremos Näo. Aqui se tenta explicar porquê.

quinta-feira, novembro 30, 2006

E a religião?

Qual é o papel da religião na discussão sobre o aborto? Devemos, os cristãos (muçulmanos, judeus, ...) abster-nos de usar argumentos religiosos? Sendo uma discussão laica, devemos calar a palavra Deus e usar somente a racionalidade?

Antes de procurar eu mesmo responder a estas perguntas, esclareço de que é areia de mais para a minha camioneta. Não apenas responder, mas também perguntar (quantas vezes formular as perguntas não é mais difícil que encontrar as respostas?). Se escrevo este post é porque confio na inteligência de quem lê este blog de dirigir a conversa para onde ela deve ir, porque o conflito religião vs discussão pública do aborto é um tema importante.

Antes de mais, acho que há várias formas de encarar a religião. Enquanto católico*, acredito que a religião não é algo que se impõe à razão, mas antes é também consequência da mesma. Assim, na linha de declarações recentes do Papa, sinto-me capacitado a usar da plenitude da minha razão em qualquer discussão. O que procuro, no imediato, não é a vontade de Deus, mas o bem dos homens (sabendo que são coisas coincidentes). O meu discurso, de religioso, passa assim a humanista, logo aceitável?

Levanto eu próprio uma objecção ao que acabei de dizer. Eu acredito no valor da razão, mas também acho que a mesma é limitada. Há coisas que hoje aceito simplesmente como são, sem tentar perceber. Algumas caem no domínio da Fé. Neste caso, tenho o direito a impôr aquilo em que acredito sem entender? O único conhecimento válido é o que nos é dado pela razão, ou os saltos de Fé que dou são bases válidas para responder à pergunta do referendo?

Se calhar questiono apenas de uma forma quase infantil qual deve ser o papel da religião numa democracia, que espaço existe para a mesma. Mas acho que do mesmo modo poderia perguntar qual o papel das ideologias (no nosso contexto, pertencer-se ao BE, PCP, PS, PSD, CDS ou outro, por exemplo; ou ainda a forma como cada um de nós vê o Estado e o contrato social que cada indivíduo tem com o mesmo) em qualquer discussão cívica? Que tipo de argumentos são aceitáveis? Que meios deve cada um de nós ter à sua disposição para decidir? É a racionalidade pura? Mas partindo de que pressupostos?

Em conclusão, eu acho que a religião enquanto conjunto de imposições dogmáticas não deve ter lugar nesta discussão. Porém, a religião enquanto forma de viver e interpretar a vida, essa é uma tendência natural do homem. Argumentos de autoridade (do tipo "a Igreja diz...", "Deus quer...") parecem-me ridículos. Mas uma racionalidade 100% livre e pura é coisa que nunca vi, e seria utópico pedir a uma pessoa que se dispa dos seus fundamentos.

O importante parece-me ser encontrarmos uma linguagem comum, de tolerância e liberdade, que respeite todos e cada um. Não me parece líquido que esta deva excluir que uma pessoa assuma as suas crenças.

Expus-me um pouco demais neste post. Mas é também uma forma de ir ao fundo das coisas.

* revelar a minha religião, neste contexto, é inoportuno ou sinal de honestidade mental? É ou não relevante?

quarta-feira, novembro 29, 2006

Ecografia – uma experiência pessoal

A emoção foi grande. Na imagem pouco nítida, a preto e branco, estava a minha filha. Via-a pela primeira vez às doze semanas de gestação. O que até ali tinha sido uma boa notícia, uma esperança, tornava-se, pela visão de um corpo de poucos centímetros, numa pessoa. Na minha filha.
Lembro-me de uma espécie de espanto por perceber que as minhas convicções se transformavam em carne e osso. No ano anterior votara Não no referendo sobre o aborto. Estava certo que essa era, em consciência, a posição correcta. Mas agora, mais do que uma construção racional, uma doutrina filosófica ou religiosa, a convicção ganhava vida. Aquele feto, ainda longe da beleza de um bebé, era muito mais que um projecto, uma vida em potencial ou um aglomerado de tecidos humanos. Era a minha filha.

sábado, novembro 25, 2006

Tribunal Constitucional

Vi muito por alto o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a pergunta do referendo e achei que tinha elementos interessantes que ajudam a situar a questão. Aqui fica o link.

sexta-feira, novembro 24, 2006

O perigo do "pacote"



A sociologia e a psicologia social explicam à saciedade as formas como o indivíduo é influenciado pelo grupo e pelo ambiente cultural em que vive. Esta influência chega, sem grande esforço, diga-se, ao ponto de convencer o indivíduo que o que pensa, diz e faz é fruto exclusivo da sua liberdade quando, de facto, não passa de interiorização de pensamentos, discursos e comportamentos impostos pela socialização.
É verdade que a sociedade é plural, porque complexa e alargada. Isto faz com que, dentro dela, haja grupos mais pequenos, onde se sentem e expressam "tendências". Estas "tendências" aglutinam, normalmente, um conjunto de valores, princípios e condutas que as diferenciam de outras. Através de um processo de interiorização, o sujeito faz seus esses valores, princípios e condutas.
Acontece que, enquanto expressão de "tendências", estes grupos tendem a aderir a "pacotes ideológicos": conjuntos de ideias, aglomerados de princípios, que surgem ao sujeito como globalidades definitórias de pertença.
Esta conversa toda para dizer que o "direito ao aborto" faz parte de um desses pacotes. Ou melhor: há muito quem queira fazer crer que assim é. Daqui decorre a sua inclusão, frequentemente, no mesmo pacote dos direitos das mulheres, da luta contra a violência de género, dos direitos das pessoas homossexuais, do direito ao divórcio, etc...
Esta concepção dificulta a análise diferenciada de cada um dos problemas. O indivíduo sente-se compelido a estar com os do seu grupo na defesa do "pacote". Afirmar uma posição contrária num tema específico é auto-marginalizar-se do seu enquadramento socio-cultural. Implica sentir-se um pária...
Dir-me-ão que exagero. Que qualquer indivíduo medianamente inteligente sabe fazer as necessárias distinções. E eu digo que muitos indivíduos, superiormente inteligentes, em contexto de tendência socio-cultural, acabaram muitas vezes por embarcar nas maiores patetices...
Ao indivíduo inseguro, integrado num grupo alargado, de tendência favorável à despenalização do aborto, restam três atitudes:
1. A influência social "obriga" o indivíduo a aparecer externamente como aderente, embora não esteja intimamente convencido, em consciência. Boa parte dos que se encontram nesta situação farão parte das grossas listas da abstenção.
2. O conformismo social é tão penetrante que induziu já a uma adesão convencida e não simplesmente externa ou aquiescente. Estes votarão sim, no dia do referendo, convencidos de estarem a exercer a mais pura das liberdades.
3. O sujeito sente-se parte do grupo, adere à maior parte das ideias e valores do "pacote ideológico", mas resiste ao conformismo nesta questão específica, afirmando a sua independência. Estes votarão não no referendo, pese embora o desconforto social, de motivação interna e externa, que enfrentam.

Estes mecanismos de influência social funcionam também, obviamente, em sentido inverso, afectando, nesse caso, os que vivem e se integram em grupos e contextos culturais onde a tendência é a contrária.

Vanda 2, serena

No que me concerne, através dos meus olhos de cinza que de longe contemplam a falsa luz do dia reprimido, é edificante ver os que socialmente se pretendem representar como eunucos, machos castrados, fecharem-se no seu ressentimento para produzir enunciados sobre o preservativo ou as gravidezes.

O eunuco reprimido, na sua retracção maligna, apenas concebe o feminino sob dois prismas : a puta ou a virgem. Não se pense, por contaminação das técnicas de propaganda inauguradas pelo Concílio Vaticano II, que tal prisma foi recolocado nalguma benignidade revitalizadora. Basta ler os hediondos textos de João Paulo II sobre o assunto, para perceber-se que a maquilhagem e linguagem dúbia do sedutor desvitalizado apenas se modernizou. É aliás para isso que têm servido os concílios, e pouco mais.

Quão raro é o eunuco libertado, que não se castrou mas se espiritualizou. E esse, não o encontrareis na luz do vosso espectáculo público, a luz dele é outra, entrevista na lâmina que nos separa do divino e a ele nos une.

O eunuco reprimido, na sua linguagem falsa, usa agora essa brilhante contradição denominada « princípio de vida ». Não lhe passa pelo entendimento, dado o ajavardamento em que este se encontra na sua retorcida mente, que a vida enquanto tal é aquilo que é refractário a qualquer conceptualização, de que a palavra « princípio » é base. Também não lhe passa pela cabeça, ou pelo menos pelo discurso, que a vida é tudo o que há neste mundo e nos outros, e que invocar um suposto princípio desta é absoluta indistinção. Os seus dislates não passam duma afronta terrível e alienada à própria vida, e à morte que a coroa a partir de dentro. Contrapor a morte à vida, e afirmar-se como a favor de uma em detrimento de outra – é mutilação da própria vida, ou melhor, da consciência que cada qual pode ir desenvolvendo acerca de si enquanto ser vivo. Para a morte, pois claro, e a ressurreição, como sabeis ou devieis saber, não a anula, antes a implica, e o resto são cantigas de maus berços.

Mas os olhos da fénix muito revelam. Esta sofísitica não trata de afirmar lucidez alguma, mas por contraposição ilegítima instaurar a mentira que os que não acompanham tal posição ideológica, serão avatares da morte. Infeliz ou felizmente, o patinanço é tal, que a noção errada da vida que orienta o eunuco frustrado mostra em todo o seu esplendor o próprio ódio que ele tem aos vivos que pretende desvitalizar.

O que está aqui verdadeiramente em jogo, é o fito explícito ou inexplícito de dominação ideológica e política, em que as igrejas cristãs já foram mestras e soberanas, e onde agora, para bem ou mal dos vossos pecados, andam a patinar como mamíferos em Marte.

O que vale, é que é o eunuco frustrado ele mesmo, que trabalha para o seu próprio fracasso, quiçá por inconsciente desejo de se curar espiritualmente. Ou então, talvez seja o próprio deus a obrar para salvá-lo.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Abstençäo

Há quem defenda a abstenção como a posição mais razoável perante o próximo referendo.
É uma opção respeitável.
Mas a abstenção pode ser entendida de muitas maneiras.
Pode significar um simples desinteresse pela questão referendada. Ou, näo sendo mulher em idade fértil, entender-se alheio a ela. Cabem aqui todos os que entendem não dever opinar sobre matéria que lhes não toca directamente.
Abster-se pode pretender dizer que o aborto deve ser tratado como um tema de consciência e que a consciência não é referendável. Aqui se incluem, entre outros, todos aqueles que entendem não ter o Estado competência para legislar sobre problemas da esfera privada.
Pode também significar que, perante a complexidade do tema, se têm legítimas e profundas dúvidas, preferindo não condicionar terceiros em matéria que o próprio não tem clara.
A abstenção pode ser entendida, também, como uma radical discordância em relação ao funcionamento e/ou representatividade do próprio sistema democrático.
Abster-se pode ser, além de tudo o mais, uma desculpa para, como se dizia ali mais em baixo, não "sujar as mãos", num tema que faz aflorar à luz social profundas divisões nascidas de cosmovisões enfrentadas.
A abstenção pode significar tudo isto e muito mais.
Seja qual for o sentido que cada pessoa que pensa abster-se queira dar a esse seu acto, há uma consequência inequívoca: na actual conjuntura social e política, isso significa colocar nas mãos dos que votam a possibilidade de a todos condicionar.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Uma Defesa Global da Vida Humana

Ideia principal: A liberalização do Aborto não é a única ameaça à vida Humana. Não podemos entrincheirar -nos nesta causa e esquecer todas as outras ameaças à vida humana. A defesa da vida passa por áreas tão distintas como a organização do trabalho e da vida urbana, a educação, passando pela atenção que damos ao modo como a cultara trata a vida e o seu sentido. Se nos cinjirmos à questão do aborto corremos o risco de não levar até às últimas consequências as nossas convicções.

Depois do último referendo, muitos dos movimentos que defenderam o não (eu colaborei com um desses movimentos) criaram associações com vista à defesa da vida. Foi um gesto de coerência. Do que conheço de algum desse trabalho, julgo que ele não pode deixar de ser valorizado. Julgo também que a Bioética tem sido um campo muito importante de defesa da Vida.

Mas julgo que a coerência de quem vota não tem que ser aprofundada. Há muitas áreas da nossa participação cívica por onde pode passar uma consistente defesa da vida humana.

Julgo que o que não pode acontecer é deixarmos que a questão do Aborto seja a única que verdadeiramente nos mobiliza e concrega. Porque, se não estivermos atentos a outras áreas por onde passa a defesa da vida Humana, estremos a ser incoerentes.
Ora isso fragiliza claramente a nossa posição e ameça a propria vida no seu começo.

Fará sentido defender o não e defender, ao mesmo tempo, a liberalização de leis laborais até ao ponto em que geram tanta incerteza quanto ao futuro que engravidar seja uma ameaça? Fará sentido votar não no Domingo do referendo e na 2ª feira seguinte perguntar à jovem que é candidata à nossa empresa se pensa engravidar ou àquele talento que está para ser promovido se faz tensões de casar?

Fará sentido pactuar com horários em que as horas extrodinárias se prolongam para além do que é humanamente razoável? Que condições damos a estas pessoas para se dedicarem à sua família, para acolherem aqueles com quem vivem e para poderem receber os que chegam? Queremos mesmo continuar a viver numa sociedade em que é normal na Banca, em Consultoras, Escritórios de Advogados horários desumanos que desgatam ao ponto de colocar em risco uma vivência humana das relações e da afectividade? Como empresário que defende a vida, qual é a minha prioridade: a acumulação do lucro ou a pessoa humana?

Que esforço existe para que o desenho das nossas cidades permita ritmos e vidas em que as pessoas se encontrem? Que esforço existe para que os nossos apartamentos sejam casa e não dormitório? Para que tenham espaço humano e físico para acolher a vida em toda a sua força?
Como pais, educadores, que tempo temos para ouvir os que nos estão confiados? Que abertura temos para as suas inquietações, as suas dúvidas? Desistimos de lhes transmitir a vida como Projecto?

Como nos situamos perante um cultura que favorece a acumulação de experiências por assimilar, que questiona a possibilidade do sentido? Uma cultura que ilude o sofrimento, que quebra laços de solidariedade e reciprocidade?

Defender a vida Humana é também repensar os fundamentos liberais do mundo em que vivemos. Um mundo que na busca de uma suposta “qualidade de vida” acentua desigualdades, inverte prioridades e ameça a dignidade da pessoa.
Acreditem que nem me considero anti-sociedade de mercado, nem julgo ter uma visão negativa da cultura. Mas confesso uma certa tristeza, por nem sempre ver a Defesa da Vida Huamana entendida como uma causa global que questiona tudo o que coloca em causa a nossa dignidade. Estou convencido que é neste contexto alargado que poderemos compreender melhor as várias facetas do fenónono do aborto, que é neste contexto alargado que podemos procurar caminhos partilhados para a Defesa da Vida Humana.

Estaremos todos os que defendemos o não disponívies para nos questionarmos nas nossas escolhas, convicções e atitudes? Para questionar tudo o que pode ameaçar a Vida Huamana? Fica a pergunta que espera o debate, com a certeza do limite com que sou capaz de defender a Vida Huamana. A tensão que pode resultar das perguntas que aqui faço é a tensão que vivo no meu confronto interior.
Vamos ao debate!?

Irra II – O outro lado (ou talvez não)

Tem razão o /me, no post anterior. A questão do aborto é muito mais complexa e grave do que uma simples cruz no Sim ou no Não. No entanto, é preciso ter cuidado para não cair no outro extremo (o que, esclareço, não acontece com o /me): deixar que a complexidade, ou a pouca sabedoria da pergunta, nos paralise. Por muito binária, muito preto-e-branco, que seja a decisão que nos pedem ela tem que ser enfrentada.
Achamos que a mãe pode decidir livremente sobre o destino do feto que traz dentro de si, até às dez semanas de gestação? Ou mantemos a lei existente que não permite a destruição do feto, excepto em três situações: malformação, violação ou perigo de vida para a progenitora?
Como parece claro para a maioria dos que aqui escrevem e comentam, nenhuma das hipóteses é imaculada. Ambas causam “danos colaterais”. Mas a democracia também é isto. “Sujar as mãos” na escolha do mal menor. Se abdicarmos da nossa intervenção outros decidirão por nós. Ou seja, mantemos a responsabilidade pelo resultado final só não usamos a capacidade de o influenciar.
Quero com isto dizer que abstenção não é legítima? Não. A abstenção faz parte do jogo democrático. Apenas me insurjo, se o posso fazer, contra os que abdicam da participação no referendo pela desconforto que uma decisão tão simplista, sim ou não, pode trazer.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Irra

Desculpem que me irrite, mas quem consegue resumir a sua posição quanto ao aborto num monossilábico "sim" ou "não" e não consegue compreender as razões do outro lado, só pode ser um idiota. Ia acrescentar "ou então nunca pensou bem no assunto", mas se mesmo assim tem tantas certezas, confirma-se: só pode ser um idiota.

Mas pois claro, temos um referendo à porta que, perdoem-me, foi escrito por e para idiotas, que nos põe a discutir esquecendo tantas vezes o que é essencial. E nós caímos na armadilha de achar que é tudo tão simples, vestindo as camisolas de um dos lados da barricada e munindo-nos de superioridades morais.

Este blog é uma excelente oportunidade para levantarmos os olhos do chão e discutir para além da estupidez do "sim" e do "não". O que não nos impede de encontrar a resposta ao referendo que mais está de acordo com o que pensamos, aquela que é mais lógica. Mas são duas coisas diferentes; o que se tenciona responder ao referendo, e o que se pensa em relação ao aborto. Misturar as duas questões tende a ser catastrófico.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Vida(s)...

Resgato um comentário feito neste blog pelo Paulo,SJ, e mais tarde "postado" n'O Insecto:

A nossa sociedade vive de forma bastante epidérmica. Entre outras situações, apercebo-me disso quando vejo o sentimentalismo a ser explorado pelo sim ou pelo não à questão da despenalização do aborto. Por um lado "coitadinhas das mulheres", por outro a exploração das imagens chocantes (mesmo que verídicas) como modo de afirmar um não (isto para me cingir apenas a estes dois exemplos). Infelizmente, deixamo-nos enredar pelo mais fácil e/ou agradável/desagradável, nestas situações bastante complexas.
Vou votar não, apesar de achar que a pergunta está perfeitamente indicada para o sentimentalismo (da liberdade de opção, dos direitos da mulher, etc. etc.) votar no sim! Se fosse votar, sem ter pensado minimamente no assunto, deparar-me-ia com uma pergunta à qual responderia sim, sem qualquer sombra de dúvida.

No entanto, pergunto: será que este é um tema de um simples sim ou de um simples não? Eu digo sim à vida e não à condenação das mulheres. A mulher que decide levar uma gravidez por diante deve ter todo o apoio da sociedade. Muitas vezes o problema não é a gravidez em si, mas o que rodeia a mulher no antes, no durante e no depois da gravidez. Por exemplo, questões sociais, falta de recursos económicos, do apoio familiar, solidão, problemas de foro psicológico, por aí fora…

Será que uma pessoa deve ser condenada porque engravidou? De todo que não. Será que deve ser condenada porque abortou? Também não. O que a levou ao aborto poderá ter sido uma pressão muito grande (da sociedade, dos pais, do parceiro, etc.), mas isto não é justificação para que o aborto seja legalizado. Infelizmente, está-se a tentar resolver vários problemas com uma solução simples e fácil, o aborto. De facto, socialmente falando, é mais simples abortar, algo que acontece por um curto espaço de tempo numa sala de operações. Ajudar uma mulher que decidiu ser mãe, a nível económico, social, até mesmo psicológico é bastante complicado e duradouro. Percebo que os cofres do estado não o possam suportar...

Já agora, será que um zigoto é apenas um “amontoado de células”? A meu ver, não me parece. A biologia não pode dizer o que é ser pessoa, o que é ser humano, precisamente por ser uma definição que abrange vários níveis (relembrar que ao longo dos tempos muitas foram as alterações da definição de humano).

Dois exemplos: a semente ainda não é uma árvore, no entanto toda a árvore está lá se a deixarem desenvolver. O “amontoado de células”, de facto, não tem aspecto/definição de humano, mas toda a essência de ser humano está lá. Todas as capacidades estão contidas no tal “amontoado de células” e serão reveladas ao longo do desenvolvimento. Ninguém é adulto antes de ser criança, antes de ser recém-nascido, até mesmo antes de ser um zigoto. Se olharmos apara nós apenas biologicamente também somos um “amontoado de células”, será isso que nos garante a humanidade, enquanto seres?

Vasco, problema

Foi num sábado de manhã que ocorreu aquele malfadado telefonema, mais precisamente as nove e oito em dígitos vermelhos do meu despertador como que olhavam para mim com escárnio e vil dizer, enquanto o estridente toque do telemóvel deflagrava dentro da minha cabeça dorida, pousado com igual sarcasmo no sofá a três metros e setenta igualmente malfadados metros da minha cama. O facto de andar a trabalhar como um forçado, com briefings atrás de briefings, e de ter na sexta anterior abusado dos clorofórmicos whiskies pós-jantar, não me estava a ajudar a decidir com clareza se sim ou não me deveria levantar para atender aquela chamada que o mínimo de civilidade fazia pressupor que o mais provável seria tratar-se de uma urgência qualquer. A vantagem deste torpor físico e mental seria o da dissolução temporal da chamada, e uma simples mensagem de voz deixar-me-ia legitimidade para ouvi-la após um mais pacífico despertar. Mas a chamada não me estava a dar adiamento, caindo e voltando a erguer-se logo de seguida numa insistência cujo desespero ameaçava contaminar-me o cansaço e a ressaca.

- Estou? tartamudeei quase em queda de borco na minha tentativa de me sentar no sofá, e Merda! exclamei logo de seguida acompanhando a queda de todos os meus papeis de trabalho que se espalharam confusos à volta do sofá, Estou? repeti já sentado, Estou, bolas!...

- Alô, exclamou o outro lado que reconheci logo pela voz, que raio me queria àquela hora e dia o mafarrico do meu irmão?...

- Alô a porra, sabes que horas são, meu sacripanta?... mas era o meu irmão, e não pude deixar de dizer isto sorrindo. Deixa-me só ir buscar um cigarro, volvi remexendo nos papeis confusos até encontrar o amarrotado maço e voltando a sentar-me, Diz, caramelo, espero que seja mesmo importante, e o cigarro estava ainda mais torto que a minha cabeça, apontava para baixo como que querendo fugir à chama do isqueiro.

- Estou metido num sarilho, disse ele enquanto eu dava a primeira baforada, A Alice engravidou, e nisto engasguei-me no fumo e desatei a tossir, Espera aí, merda, disse-lhe eu, Que é que estás para aí a dizer?... Quando é que souberam?...

- Ontem à tarde… Nem dormi nem nada. Já está de cinco ou seis semanas e… vamos abortar.

- …

- Eu não sei é nada disto, onde é que se faz, como… E lembrei-me de ti. Eu sei o que tu pensas destas coisas mas… não sei, não vou abrir um jornal e ir a Espanha à primeira clínica que estiver anunciada… Tu conheces tanta gente…

- …

- Vasco, preciso mesmo de ajuda.

- Foda-se, catraio, que merda… Nunca ouviste falar do preservativo?...

- Poupa-me aos teus sarcasmos… Sabes como é que é… Claro que usamos preservativo…

- Eu não estou farto de te dizer que se não estás mesmo numa de ter filhos, deves pô-lo logo no início e não andar a brincar aos John Holmes...

Um silêncio interpôs-se, enfim, era natural, mas eu não estava em estado nem para aferir da densidade e peso desse silêncio.

- Olha, deixa-me tomar um duche e um café que eu já te ligo… Tu estás bem?...

- Estou, estou… Quer dizer, estou uma pilha de nervos, mas de resto… Vai lá tomar o duche e depois liga-me.

- Ok, puto. Até já. Tenta acalmar-te. Fizeste bem em telefonar-me. Alguma vez te deixei ficar mal? e de imediato me lembrei de tantas vezes que o deixara evidentemente ficar mal, mas ele percebia o que eu queria dizer.

Deixei cair o telemóvel para o meio dos papeis espalhados no chão, e ali fiquei tentando tomar consciência do telefonema, o cigarro torto fumegando-me nos lábios e a cabeça latejando.

Os dígitos do relógio anunciavam as nove e dezasseis.






Nota: Por motivos e motores de vida e pensamento, eu não votarei no dito referendo nem não, nem sim, nem talvez. O que faço aqui indica-se nestoutra nota.

terça-feira, novembro 14, 2006

Contradiçöes?

Uma curiosa onda de esquerdismo católico parece estar a varrer a América Latina. O último exemplo chega da Nicarágua, com a vitória do sandinista Daniel Ortega.
Lugar especial no debate político sul-americano, tem tido o tema do aborto, com a campanha a favor da vida feita bandeira pela esquerda mais agressiva. É, para já, um fenómeno que chama a atenção.
Através do Timshel, cheguei a esta pergunta de Tomás Vasques:
"Como reagirá a malta do PCP/BE a este contratempo? Assobia para o ar, como é hábito? E este pessoal todo: Blogue do Não, Pela Vida, Quero Viver, Razões do Não, Sou a Favor da Vida, Viver a Sua Vida, também assobia para o ar?"
Estando este blogue incluído na lista, acolhi a pergunta como merecedora de atenção e resposta.
Há nesta questão um irónico tom provocatório, como se de repente, uns e outros tivéssemos de nos sentir incómodos por esta aparente "salada ideológica" que mistura num só prato o que nós parece servirmos por separado.
Sem querer explicar complexidades que não tenho a pretensão de dominar, limito-me a uma opinião que emerge do meu pouco saber.
Antes de mais, parece-me necessário evitar comparações entre realidades políticas com um percurso histórico muito diferente. Há muitas "esquerdas", como há muitas "direitas".
Relacionado com o anterior, não posso deixar de me interrogar sobre a influência da Teologia da Libertação na evolução da esquerda latino-americana.
E, sobretudo, os factos apontados como contraditórios, parecem-me confirmar o que já várias vezes tive oportunidade de escrever: o problema do aborto, a sua liberalização ou criminalização, ultrapassa largamente os limites das ideologias políticas, enraizando-se em convicções éticas, antropológicas, filosóficas e morais que antecedem e extravasam o conceito de pertença partidária.
Os exemplos que chegam do outro lado do charco deitam por terra a colagem entre liberalizaçäo/esquerda e anti-aborto/direita. Provam apenas que há muitas alternativas às categorizaçöes que na Europa se apresentam como inevitáveis.
Por outro lado (ou no mesmo lado, conforme se veja), a pergunta supracitada supõe a categorização à direita dos defensores do "não", em Portugal. O que é falso, como todas as generalizações.
Dito isto, resta o óbvio: embora partilhe com muita gente alinhada com fundamentalismos de direita a minha orientação de voto no Não, isso não significa que os convide para jantar.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Esclarecendo o que pode mudar em 2007

Na passada quarta-feira, publiquei este texto.

Pareceu-me, na altura, que seria bom procurar todos os esclarecimentos de que fosse capaz para poder dar conta deles neste mesmo espaço.
Nesse sentido, através de contactos de Deputados diposníveis no site da Asembleia da República, foi possível obter informações que podem aclarar as dúvidas quanto às mudanças que pudessem vir a ter lugar caso o sim ganhasse o Referendo de Janeiro.
Dessas informações resultou o seguinte:

1º O Projecto de Lei(PL) que está em causa este ano é o mesmo que em 2005. (PL 19/X)

2º A esse Projecto foi apresenatada, até à data, uma única Proposta de Alteração pelo PS. Aí são propostas as seguintes alterações :

a) Ao contrário do que estava previsto em 2005, não é alterado este ponto da actual Lei:
“ Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde fisíca ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.”

É deixada de parte a seguinte redacção:
“Caso se mostre indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez.”

Nota: Esta alteração acontece para que não haja incompatibilidade com a pergunta do Referendo.
Aliás foi exactamente para evitar essa incompatibilidade que esta Proposta foi apresentada antes do Referendo e muito antes do final do prazo para o efeito.

b) São sumprimidos os Artigos referentes à criação dos Centros de Apoio Familiar(CAF).

3º As Propostas de Alteração que vierem a ser apresentadas pelos Partidos podem incidir sobre qualquer artigo do PL 19/X.

4º Conforme o resultado do referendo e a decisão politica que for tomada sobre esses resultados, o Projecto de Lei ou cai ou, é concluído o processo Legislativo no âmbito da especialidade, marcando-se para o efeito uma data para a entrega de Propostas de Alteração.
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Na leitura que faço a desadequação entre a Pergunta do Referendo e o Projecto de Lei, resolvida em 2006 pela Proposta agora apresentada, aconteceu em 1998(PL 451/VII) e teria acontecido em 2005(PL 19/X apresentado a 22 de Março). Isso acontecia porque as mudanças previstas iam para além do que foi ou seria perguntado.

Tanto num caso como no outro os Projectos continham esta passagem:

“Caso se mostre indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez.”

Julgo também que seria útil termos conhecimento antes do referendo de todas as propostas de alteração ao PL 19/X que possam vir a ser apresentadas. Parece-me que isso tornará mais claro o que pode vir a estar em causa.
Naturalmente, seria sempre a opinião do PS a que teria mais peso em eventual votação, devido à sua maioria.
Prestada toda esta informação, reafirmo com clareza o meu NÃO.


Nota: Até à proxima sexta-feira dia 17, terei dificuldade em escrever mais algum texto e em reagir a algum comentário que me seja pessoalmente dirigido...


Até já!

Acerca das imagens

Questiona-se a legitimidade das imagens de fetos mortos em abortos provocados. Por duas razões. Pela incorrecta datação da idade do feto e pela violência dos corpos estraçalhados.
Também aqui, tal como nas palavras, parece-me que o Não só tem a ganhar se usar de bom-senso, ponderação, e evitar radicalismos.
Por um lado, a honestidade deve ser total na divulgação da idade do feto. Não vale a pena tentar forçar a entrada no reduto “aceitável” das dez semanas. Se tem onze, doze ou mais semanas diga-se claramente. Pode perder em impacto imediato mas ganha em credibilidade no diálogo. E, para além da questão moral da mentira, a eventual descoberta do “lapso” apenas trará pontos a favor do Sim e lançará a dúvida sobre futuras imagens correctamente datadas.
Por outro lado, o efeito chocante das imagens, sobretudo quando as pessoas são apanhadas desprevenidas, pode ter resultados contraproducentes. Como acontece comigo quando, sem aviso prévio, os telejornais passam situações de “morte em directo” em guerras, ou mostram pedofilia quase, quase explicita, ou procuram o sangue do acidente no asfalto, também percebo que algumas pessoas repudiem quem lhes mostra, de chofre, a violência extrema dos fetos abortados. Obviamente que isto não quer dizer que essas imagens devam ser esquecidas, ficando ausentes do debate. Tal como as reportagens sobre o terror nos campos de concentração nazis, também os fetos lapidados e ensanguentados registam o resultado concreto dos actos praticados. Nesta discussão não se teorizam princípios, dá-se o sim ou o não a actos com consequências. E as imagens são, por isso, necessárias. Mas não devem ser impostas em emboscadas.
Entretanto, o avanço tecnológico também dá uma ajuda. Já é possível espreitar, com boa qualidade, a vida intra-uterina (aqui). Ou seja, o choque não é a única frente do combate visual.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Causa equivocada

Valores como a solidariedade, justiça social, fraternidade, igualdade, defesa dos mais fracos, a equitativa distribuição dos bens, etc... fazem parte do ideário reclamado por qualquer pessoa de esquerda (o que não impede, naturalmente, de serem sentidos como seus por qualquer pessoa que se coloque a si mesmo a etiqueta de "direita"...).
Este "universo ideológico" tem um sentido global evidente: a construção da sociedade em que o bem do indivíduo se busca e se afirma na consecução da comunidade, do bem comum. Traz nos genes, portanto, as ideias de generosidade e de abertura ao outro.
O aborto não cabe aqui.
Custa ver as elites políticas da esquerda transformadas em ponta de lança do mais feroz individualismo.
Porque é disso que se trata. Se levantarmos os olhos do umbigo, facilmente veremos em que "onda cultural" se enquadra esta batalha: na sobrevalorização do indivíduo, em que o "eu" é o centro do universo. Aqui se entendem chavões propangandísticos como o famoso "Na minha barriga mando eu". Isto é o contrário de "esquerda". Esta é uma causa equivocada.
Como a política "progressista" se faz de pequeninas batalhas em que o único factor que parece importar é esticar a corda para ser "fracturante" e, portanto, de esquerda, estão, neste tema específico, a esticar a corda para o lado errado.
Considero-me uma pessoa de esquerda, mas as minhas ideias não dependem do partido em que voto, mas da sociedade com que sonho. E nessa utópica civilização, para que oriento a minha cidadania, o aborto é um erro grave que urge evitar e não liberalizar.

quarta-feira, novembro 08, 2006

O que mudava com o Projecto de Lei de 2005?- CORRIGIDO

NOTA EXPLICATIVA da CORRECÇÃO: Encontrei ontem informação que chamava a atenção para o facto de as alterações à Lei Actual , caso o Sim ganhasse, virem a ser em mais âmbitos do que aquele que mais se tem discutido.
Depois de uma pesquisa no site do Grupo Parlamentar do PS encontrei o Projecto que aqui transcrevi.
Contudo num primeiro momento não me dei conta que esse Projecto era relativo ao ano de 2005 quando, estando o PS já no Governo, houve uma proposta de referendo que não chegou a avançar.
Pelo que fui capaz de concluir da investigação que fiz, no caso do actual Referendo não haverá ainda nenhum Projecto de Lei que o concretize. Suponho que isso aconteceria apenas em caso da vitória do sim.
Peço, por isso, desculpa por esta falha da minha parte que pode ter induzido pessoas em erro.
De qualquer forma, parece-me que, sendo este o último documento elaborado pelo Grupo paralamentar do PS a que é possível ter acesso e feita esta nota, que esta informação continua a ser útil.
Caso tenha conhecimentos mais aprofundados sobre este assunto, publicarei aqui essa informação.
Zé Maria Brito, sj
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Projecto de LEI de 22/3/2005 (19/X/1)
(Que foi proposto pelo PS simultaneamente com uma Proposta de referendo que não a ter lugar)
Artigo 142°
Interrupção da gravidez não punível

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção, em estabelecimento oficial ou oficialmente reconhecido com o consentimento da mulher grávida, nas seguintes situações:


a) a pedido da mulher e após uma consulta num Centro de Acolhimento Familiar, nas primeiras dez semanas de gravidez, para preservação da sua integridade moral, dignidade social ou maternidade consciente; - NOVO

b) (actual alínea a): Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde fisíca ou psíquica da mulher grávida;

c) caso se mostre indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez - ALTERADO
altera a Lei actual que é assim:
[b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde fisíca ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez;]

d) (actual alínea c);

e) (actual alínea d).

2- Nos casos das alíneas b) a e), a verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada através de atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

A /me'nha opinião

Esta questão é demasiado complicada. Para mim, vai bem para além de dicotomias simplistas.

Não sei se concordo com a possibilidade de se poder abortar no caso de violação ou no caso de deficiência do nascituro (mas aceito-o como sendo, de momento, facto consumado, sobre o qual não tenho de pensar). Não tenho o mínimo de dúvidas de que o aborto deve ser permitido no caso de perigo de vida para a mulher.

Não, não considero o nascituro (que palavra conveniente) uma pessoa como eu ou como quem me lê. Não fazemos funerais a abortos (naturais) de 3 meses, mas já fazemos a crianças de 3 meses. É porque alguma diferença há. Não obstante, é vida, tende para gente, homem ou mulher.

Acho que faz sentido (na discussão actual) discutir se se deve poder abortar até às 8 ou até às 12 semanas, se se deve alargar o número de casos em que se pode abortar (para poder, por exemplo, incluir o caso de adolescentes que não têm maturidade ainda para ser mães, seja aos 12 ou aos 19; sei que é complicado, mas com criatividade tudo se faz) ou restringir a prática do aborto. Acho que faz sentido discutir as penas. Não acho que faça sentido despenalizar, pura e simplesmente. Sinto que o aborto não é uma área em que o Estado possa estar calado; por regra, e a menos que haja razões lícitas, tem de se dar um sinal de reprovação a esta prática.

Para ser mais concreto, acho mesmo que se deveria aprofundar o que significa haver lesões para a saúde psíquica da mulher grávida (aqui cabem, quanto a mim, as adolescentes grávidas cujos pais imaginam virginais, a mulher com 5 filhos casada com um bêbado que a maltrata, sei lá, as piores situações). É mais uma questão de interpretação da lei do que necessidade de a alterar.

Feito isso, quem abortar sem ser por essas razões (qualquer uma das atrás indicadas), mas por critérios egoístas, desculpem-me, mas não me importo muito que vá para a cadeia. Mas talvez seja a minha insensibilidade masculina. Submeto-me ao contraditório, com a consciência de que sei pouco, e com a vontade de aprender dos outros.
PS: Permitir-se o aborto a uma mulher porque esta não tem como sustentar o filho é demissão da solidariedade na sociedade, e é o que me choca mais que tudo.

Proposta do referendo

Proposta socialista:

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Lei do aborto II

Penso que a lei que está em vigor é a de 1984.

Artigo 139

1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar será punido com prisão de 2 a 8 anos.

2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar, fora dos casos previstos no artigo seguinte, será punido com prisão até 3 anos.

3 - Na mesma pena incorre a mulher grávida que, fora dos casos previstos no artigo seguinte, der consentimento ao aborto causado por terceiro, ou que, por facto próprio ou de outrem, se fizer abortar.

4 - Se o aborto previsto nos n.os 2 e 3 for praticado para evitar a reprovação social da mulher, ou por motivo que diminua sensivelmente a culpa do agente, a pena aplicável não será superior a 1 ano.

5 - Quando do aborto efectuado nos termos dos números anteriores ou dos meios empregados resultar a morte ou uma grave lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, que aquele que a fez abortar poderia ter previsto como consequência necessária da sua conduta, o máximo da pena aplicável a este será aumentado de um terço.

6 - A agravação prevista no número anterior é aplicável ao agente que se dedicar habitualmente à prática ilícita do aborto ou que realizar aborto ilícito com intenção lucrativa.

Lei do aborto

Eis a lei actual (espero não me ter enganado):

Artigo 140 (Exclusão de ilicitude do aborto)

1. Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

2. Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
- Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez;
- Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez;
- Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.
- A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

3. A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.º 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação.


Artigo 141 (Consentimento)
1. O consentimento da mulher grávida para a prática do aborto deve ser prestado, de modo inequívoco, em documento por ela assinado ou assinado a seu rogo, nos termos da lei, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente a data da interção.
2. Quando a efectivação do aborto se revista de urgência, designadamente nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior, é dispensada a observância do prazo previsto no número anterior, podendo igualmente dispensar-se o consentimento da mulher grávida se ela não estiver em condições de o prestar e for razoavelmente de presumir que em condições normais o prestaria, devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstancias constar de atestado médico.
3. No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos, ou inimputável, o consentimento, conforme os casos, deve ser prestado respectiva e sucessivamente pelo marido capaz não separado, pelo representante legal, por ascendente ou descendente capaz e, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.

4. Na falta das pessoas referidas no número anterior e quando a efectivação do aborto se revista de urgência, deve o medico decidir em consciência em face da situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos, devendo, em qualquer dos casos, a menção de tais circunstancias constar de atestado médico.

Vanessa, apresentação

Eu não tenho assim muitos estudos, quero dizer que nem acabei o liceu, outras aprendizagens se foram metendo de permeio, e o sedentarismo domesticado nunca foi o meu forte. Até porque a única leitura que gosto é a poesia, coisa impossível de fazer acontecer numa sala de aulas. Ainda o pouco da seiva que consegui retirar da minha passagem pelas escolas, foi o encontro particular com este ou aquele, evidentemente e sempre fora da sala de aulas, e com tendência e veemência para viver-se fora da escola, pelas ruas da cidade onde a vida acontece, assim como a morte.

Por mistérios que a vida poéticamente entretém, na maravilha e no horror, dei comigo a trabalhar num centro do Bom Amor, em Lisboa, na zona de S. Sebastião da Pedreira. Trata-se dum pequeno prédio de três andares, onde se albergam crianças e adultos que a sociedade tece mas não entretece, mau grado os discursos dos seus pequenos ou maiores representantes públicos, a começar pelos imbecis que gerem este centro onde trabalhei durante quase dois anos.

Passa-se pois que fui despedida, e para mais com um bónus de dois processos crime no topo ou em anexo, por coisas que fiz e terei, por razões vitais, de assumir e defender perante seja quem fôr. E mais do que isso, sofrendo e revoltando-me por tais actos e atitudes serem tão rigorosamente anulados em instituições como as do Bom Amor, sem porventura sequer se vislumbrarem outras respostas adequadas aos problemas que me impeliram a tais acções.

Para ficarmos com uma ideia geral da realidade onde se banha aquele centro do Bom Amor, e no fundo a vida de todos nós, em maior ou menor distância e ilusão, temos de ter em mente que a maioria das pessoas cujo trajecto lá se abate, são crianças abusadas de todos os modos e medos, que misturamos com pessoas brutalmente perturbadas ou doentes, de todas as idades, e que não têm onde nem como cair vivos ou mortos.

Aquele que com mais ferro me marcou, e que interessa para os casos a falar aqui, foi o Zeca. O Zeca tem onze anos e um corpinho musculado como se fizesse musculação desde os três. Mas a loucura é outra. Depressa me apercebi que a tensão nervosa que o habitava daria para duas bombas atómicas, e que ainda sobraria suficiente pressão para dar cabo de eventuais sobreviventes. É a tensão nervosa e a agitação constante que lhe desenvolvem os músculos, e o atarracam. É daqueles que a directora e a pita que se diz psicóloga consideram de « muito problemático », o que significa que « com este será difícil fazer algo ». Logo após eu chegar, descolou a retina com um estertor enquanto dormia. Uma semana depois caía pelo caracol da escada partindo uma perna. A estrada é pequena demais para a sua fuga.

É no entanto um miúdo muito carente e carinhoso, embora o seu modo de expressar e procurar amor esteja de acordo com a vida que o violentou. Uma vez, estando eu a subir a escada e ele mesmo atrás de mim, enfiou-me a mão saia acima, e agarrou-me o sexo de mão cheia, quero dizer não como quem toca algo de estranho e desconhecido mas com a mão segura e forte de quem sabe muito bem do que se trata. Virei-me para trás um pouco surpresa, e ele rindo disse : É quentinho, não é ?... Afaguei-lhe o rosto, não sabia mesmo o que dizer-lhe. O equívoco nele era tão tremendo que qualquer palavra o poderia confundir ainda mais. E eu ainda não o conhecia o suficiente, e saiu-me tão só : Não deves fazer isso sem ter a certeza que a outra pessoa quer que tu lhe mexas aí… Levei-o para o quarto, era hora de deitar, e contei-lhe uma estória para ele dormir, uma estória com suficiente imaginação e cores e ternura, algo que eu queria que lhe alargasse a estrada ou a dirigisse para alguma serenidade, sei lá eu o que se pode fazer pelo outro ou pelo mundo ou até por nós próprios. Andamos é aqui todos a apanhar bonés, mas que raio, tem que se fazer qualquer coisa, nem que seja tentar desenhar uma flor no rosto da nossa perdição.

domingo, novembro 05, 2006

Outro Não...

... à Pena de Morte. Seja porque motivo for. Seja aplicada a quem for... Sem excepções!

quinta-feira, novembro 02, 2006

Como decidir?

Como o Manuel transcreve aqui, o resultado do referendo parece estar em aberto. O que significa que a barragem artística/intelectual/jornalística a favor do Sim, que domina os meios de comunicação, não decide sozinha. Há gente que escuta outras vozes, gente que percorre outros caminhos. E isso é bom. Não só porque o Não pode sair vitorioso (objectivo principal) , mas também porque pode ser a capacidade de diálogo a desempatar. Depois de tantos anos a falar do aborto, o discurso extremista já conquistou quem tinha a conquistar. Agora, acredito eu, a argumentação franca tem a sua grande oportunidade. Vamos decidir isto em consciência, para além dos chavões e da demagogia?

Valério, acto um

Isto passou-se há já algum tempo, numa época estranha, a dos meus dezassete anos. Andava fugido de casa, e não vos vou contar a estória toda, mas se conhecessem o meu pai admirar-se-iam de eu só o ter feito aos dezassete anos. Ou de não me ter atirado a um poço em criança. Ainda hoje me espanto, deve mesmo haver um deus que nos sustenta. Como eu aguentei aquilo, depois de a minha mãe ter adormecido para sempre com um festival de barbitúricos, deve ser a melhor prova do inagarrável sentido da vida que poderei alguma vez ressentir.

O facto é que aos dezassete anos, meti na mochila da escola os dois ou três livros que me faziam respirar um pouco, assim como a única fotografia da minha mãe, que guardara secretamente, e abalei sem escova de dentes daquela aldeiazinha amaldiçoada onde todo o movimento autêntico de vida era aniquilado como a pior das afrontas.

Vim para Lisboa, parecia-me que uma cidade grande era um óptimo lugar para nos esconder do que nos possa perseguir, assim como do passado que sempre nos assombra. E foi em Lisboa que a conheci, foi em Lisboa que ela me salvou, foi em Lisboa que o amor se abriu e me acolheu. Acerca disto, dizer tudo seria dizer pouco, quase nada. Ela viu-me num bar onde eu aportara, ali para os lados do Saldanha, um bar onde eu me sentara amedrontado na noite da cidade, os olhos de todos aqueles nocturnos habitantes e viandantes olhando-me como um estranho pequeno tão frágil de que até uma mosca urbana se pudesse aproveitar e abusar. Ela viu-me e pagou-me a cerveja e levou-me dali como um sorriso afasta o medo.

Ela também andava fugida, outra estória que então desta nada direi, ia fazendo o seu dinheiro diariamente para pagar o quarto da pensão e o resto, dum modo de que ainda menos direi, aquele quarto de pensão em que me acolheu e protegeu ali na Almirante Reis.

Bem, eu nunca tivera relações sexuais, e acabou por acontecer um dia, ou melhor, uma noite, e foi... Lembro-me do seu rosto olhando para mim, sorrindo no início tão serena, guiando-me no acto carinhosa e atenciosa mais do que alguma vez alguém fôra depois da morte da minha mãe.

O problema foi o preservativo. No meu nervosismo e até alguma vergonha, eu não pusera aquilo muito bem, não conseguira desenrolá-lo até ao fim, e quando dela me retirei o borrachete já vinha quase saído e pendurado, e tudo aquilo gotejava esperma e sei lá mais o quê.

E naquele momento de quase felicidade e suspensão de todo o resto do tempo e do mundo, naquele momento de só nós dois e mais nada nem ninguém entre nós ou à volta ou por dentro rangendo, ela apenas disse sorrindo:

- Não te preocupes, também... era preciso muito azar.